João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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Não há caminho para o fim
a propósito da peça "Bonfim" de João Pedro Vale

Para a exposição "Bonfim", João Pedro Vale apresenta, suspenso no tecto, um barco, ou o que resta dele, coberto ou reconstruído por fitas de tafetá branco com a inscrição "Não há fim para o caminho", e aqui a distinção entre a cobertura e a reconstrução apontam pelo menos dois dos caminhos possíveis para a leitura da peça. Por cobertura, entenda-se acumulação; por reconstrução, remedeio.

Olhando o objecto em si, deparamo-nos com a visão da camuflagem obsessiva daquilo que nos parece ter a forma de um barco. Recorrência mais ou menos constante em trabalhos do autor, esta camuflagem, aqui, tanto pode servir para esconder, embrulhar, como para dar forma àquilo que posteriormente percebemos ser só uma carcaça, um destroço, que a vergonha, a vaidade ou o orgulho decidiram embelezar. Enquanto remedeio, apresenta-se parco, quer pela consistência do material utilizado, quer pela trama lassa e algo descuidada.

Começando por alguns dados históricos, a expressão "Bonfim" remete-nos para a cultura popular brasileira, de onde provém as famosas fitas do Senhor Jesus do Bonfim (da Bahia), ex-libris dos souvenirs, a que se atribuí o poder da realização de três desejos do portador, um por cada nó ao redor do pulso, que se realizam no acto da quebra do laço, do rasgar da fita depois de muito usada. Curioso é que o culto ao Senhor Jesus do Bonfim seja originalmente português, mais concretamente de Setúbal, atribuído a um náufrago da zona que ao santo ficou devedor da sua salvação, e portanto aí iniciando o seu culto. Como em trabalhos anteriores, o autor apropria-se deste equívoco histórico para questionar a identidade da cultura nacional, ou melhor, a construção de determinada identidade nacional, muitas vezes de configuração linear, omitindo influências ou contaminações que lhe impediriam o carácter único. Neste caso, a transacção de culto religioso, quer entre países, quer entre religião católica e pagã, fala-nos da impossibilidade de destrinçar por que laços se unem as coisas, da impossibilidade de determinar esses laços e do uso por vezes panfletário que se faz dos mesmos, em nome de uma irmandade imposta pela conquista e pela subjugação.

Será por demais facilitar o caminho, atribuir ao barco a posse do significado maior da metáfora enquanto elo entre Portugal e o Brasil, a metrópole e a ex-colónia. Existe um mar, existiram muitos barcos que de um lado para o outro transportaram toda a sorte de géneros materiais e não só. Existiram certamente muitos outros que sucumbiram pelo caminho, que se desviaram da rota, num movimento incessante a que a história se encarregaria de atribuir os mais diversos significados, dos mais edificantes, a civilização, dos menos, a ganância. Igualmente fácil será apelar ao saudisismo português para justificar a expressão "Não há fim para o caminho", inscrita na trama de fitas, de significado ambíguo, misterioso, que por um lado confirma essa deriva dos caminhantes que não sabem para onde vão ou ao que vão, tendo no caminho o único objectivo, e que por outro lado, nega essa mesma deriva, apresentando o caminho como infinito sem princípio nem fim.

Aqui chegado, depois de tantas facilidades, atravessa-se no meu caminho os versos da popular canção: "Eles foram tão longe e quiseram decerto chegar mais além, eles foram tão longe e estivemos tão perto de de sermos alguém". E é esse "Ser Alguém" que não chegou a ser que ironicamente nos dá o sentimento de identidade, como se na assunção do fracasso residisse a essência da nossa grandeza. Tantos barcos, tantos caminhos, para que esse "quase" que nos faltou, nos permitisse a distinção, e assim continuássemos como que presos a uma pretensão de conquista. A história é escrita pelos vencedores. "Eles foram tão longe" porque assim nos fizeram crer, e a história do saudosismo português é escrita pela vontade de vencer, é a escrita da eterna viagem rumo à vitória que nunca chegou a acontecer. Arrepiemos caminho.

Começar de novo, diz-se, depois da tempestade. Aqui, depois do naufrágio, que dele falava eu no parágrafo anterior. Ao convocar para este trabalho esse imaginário popular específico de concessão do desejo, o autor apropria-se dessa ideia de destruição enquanto processo para a construção da obra. A destruição da fita que permite a realidade dos desejos a quem os formula, a destruição patente no barco suspenso, enquanto metáfora do naufrágio ou da redenção. Ao naufrágio, canta-o o fado, à redenção, o louvor, povo e religião, e aí os caminhos adensam-se, tal como as fitas em redor da armação do barco. O carácter obsessivo com que milhares de fitas se encontram atadas, enlaçadas, fala-nos desse laborioso trabalho dos anónimos dos grandes feitos, que por fé ou obrigação tornavam suas as crenças num futuro grandioso, e simultaneamente engrossavam as hordas dos peregrinos embarcados. Existem sempre duas razões para se partir, porque é grande o que se busca, porque é pouco o que se deixa para trás e sou tentado a dizer que a segunda razão justifica este embarque.

A despropósito, que já muito nos desviámos do caminho traçado, mencione-se ainda que a frase inscrita nas fitas foi retirada do romance de Neville Jackson "No end to the way" de 1965, descrito como "the classic novel of a homosexual marriage". Neste romance o autor relata o processo de descoberta, conquista, posse e ruptura entre dois homens, dado sobejamente supérfluo se de todas estas coisas se constróiem os processos entre as pessoas, entre as coisas, entre as primeiras e as segundas, desde sempre e até sempre, por muitos discursos que se construam para baralhar os dados, daí o termo “Novela clássica”, justifico eu, aparte considerações autorais, provavelmente outras, desejo de legitimação dum meio marginalizado, imagem da jangada de salvação ou da barca do inferno.

Em jeito de conclusão, que aqui nada se quer concluído, ou não fosse a mesma uma barreira para o acesso a outros caminhos, resta-me dizer que é também de medição de forças que nos fala João Pedro Vale, ao opor os despojos de um barco, escolha pouco edificante para um glorioso passado marítimo, e um desejo de acreditar, aka fé, apelo a um obscurantismo fanático capaz de cruzar os mares e os séculos. A verdade de não haver caminho para o fim, como não há caminho para o saber, ou para a verdade. A razão de um barco naufragado e a aspiração de chegar a bom porto. Sem pretender tecer juízos de valor, o artista apresenta, face a face, o miserabilismo material e o miserabilismo do espírito, ou a sua grandeza que da adversidade nascem os heróis. E nós sem saber qual deles a causa, qual deles o efeito. Sem saber qual o caminho para o fim. Sem resposta, como na arte.

Nuno Alexandre Ferreira
Lisboa, 13 Maio 2004