João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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Qualquer Coincidência com a Realidade é Pura Semelhança

Podemos começar pelo nome da exposição de João Pedro Vale. "Nascido a 5 de Outubro", que agora se apresenta na Galeria Filomena Soares, situa-nos de imediato numa dimensão temporal e biográfica muito específicas, o dia do nascimento do artista, em 1976, documentado na Peça dos anos 70 (1976-2006), uma fotografia do artista na maternidade no dia em que nasceu. O título da peça remete-nos desde logo para o tom irónico que preside à construção a que vamos assistir, como se o tempo dos factos e o tempo dos discursos e das leituras que sobre eles se constroem deixassem de ter uma fronteira clara e a sabotagem fosse o único instrumento utilizável para nos ajudar.

Cinco de Outubro é, com alguns anos de intervalo, o dia da Implantação da República Portuguesa em 1910. A partir desta coincidência, o artista desenvolve uma série de projectos onde o discurso histórico, na sua vertente constitutiva da identidade nacional, é consecutivamente questionado. República (2007), referência directa à pintura "A Liberdade Guiando o Povo" de Delacroix, é uma fotografia do peito do artista que segura na mão uma caneca de típica loiça das Caldas em forma de seio feminino e dá-nos o mote. A descontextualização dos seios da mulher que personifica a liberdade, torna-a ambígua entre a seriedade da representação do tema e o carácter lascivo que se lhe pode atribuir. Para o processo de criação artística nada está sacralizado.

Existem três momentos temporais abstractos que precedem a construção da exposição. Existe o "passado glorioso português", o tempo da construção de uma mitologia nacional levada a cabo pelos movimentos nacionalistas e republicanos no século XIX e o tempo da apropriação dessa mitologia pelo regime ditatorial que acabou na revolução de 1974. João Pedro Vale, nascido a 5 de Outubro de 1976, em plena democracia, constrói para esta exposição um discurso sobre discursos e lança a suspeita sobre a fiabilidade muitas vezes pré-concebida dos mesmos, sejam eles históricos, políticos ou religiosos.

O nome da exposição evoca ainda o filme de Oliver Stone "Nascido a 4 de Julho" (EUA, 1989), onde um veterano que volta paraplégico da guerra do Vietname (e na nossa pouca memória a guerra colonial), como herói, se vê confrontado com uma dura realidade de abandono por parte daqueles que tanto admirava e por quem combateu. A seguir à perplexidade, resignação e declínio da personagem, dá-se o volte-face narrativo, em que o antigo herói nacional se revolta e passa a personificar simbolicamente a ontestação. Em The Chairman (2007) o artista retrata-se sentado numa cadeira de rodas, sobre as escarpas do cabo de São Vicente, nú e encolhido, como se a imensidão do mar que tem à frente, que outrora inspirou os navegadores portugueses a instituir aí a primeira escola de navegação no século XV, lhe impossibilitasse agora o movimento. O "homem da cadeira" é ainda uma alusão à ditadura de Salazar, a cadeira como símbolo de poder e como objecto que lhe causou o hematoma craneano que o levou à morte.

No seguimento desta ideia de mar como símbolo de fronteira, surge Ponta (2007), onde o artista se faz representar no cabo da Roca, a ponta mais ocidental da Europa. Se a alusão a Caspar David Friedrich, um representante do romantismo na pintura alemã, e à pintura "Viajante Junto ao Mar de Neblina" de 1818 é óbvia, é igualmente nomeável a conotação de ponta enquanto tesão na gíria sexual.

Da simbologia tratam igualmente outros dois trabalhos que mimetizando o aspecto antigo das fotografias a preto e branco de passe-partout recortado, remetem de forma anacrónica situações presentes para um hipotético passado. Em Vale e Salazar (2007) o artista desloca o simbolismo do nome Salazar para o mundo da moda ao fazer-se retratar com Ana Salazar, o nome mais reconhecido da moda actual portuguesa, como se para a sua geração pós revolução, este fosse o sentido único da palavra. Em Tudo isto é fado (2006) o artista aparece com Mariza e Camané, dois fadistas da nova geração que encarnam agora a actual imagem daquela que é considerada a canção nacional, independentemente das conotações que lhe foram atribuídas, da exaltação ao desprezo, consoante o contexto político que se vivia.

Numa clara alusão ao contexto político e social do Estado Novo, Vale apresenta réplicas feitas em plasticina de duas pinturas da época, Salazar a Vomitar a Pátria, 1960, Paula Rêgo (2006) e S.M., 1961, Joaquim Rodrigo (2007). Ao seleccionar estas duas pinturas, interessa ao artista pôr em confronto duas formas de contestação. Ao discurso directo e visceral de Paula Rêgo, a morar em Inglaterra, sobre a situação do país, opõe-se o discurso críptico de Joaquim Rodrigo que em “S.M.” (1961) retrata o assalto ao paquete Santa Maria de forma velada como meio de escapar à censura, ela própria responsável pela falta de informação que existia no país sobre o acontecimento.

Se existe figura histórica que constitui amplamente a mitologia nacional e apontada como responsável pelo carácter português, é o rei D. Sebastião. De visionário a louco, de débil a grande homem, a figura deste rei perante as indecisões políticas (entre a expansão marítima e a conquista do norte de África), transformou-se num arquétipo que perdura no imaginário português até à actualidade. Considerações políticas à parte, é a dimensão mitológica e a forma como esta ganha determinados contornos políticos consoante o discurso vigente, sem que a mesma se apague, que interessa a João Pedro Vale. O Sebastianismo cuja origem remonta ao século XVI surge como consequência da morte do rei na batalha de Alcácer-Quibir e a perca da independência do país e durante séculos, a crença no retorno do rei messiânico foi a arma que alimentava a alma do povo contra períodos de políticas menos favoráveis.

Na peça Os cavalos também se abatem ou a batalha dos 3 reis (2007) a referência à mítica batalha de Alcácer-Quibir é directa. Apresentados como troféus de caça podemos ver três conjuntos de pernas de cavalo, número equivalente ao número das montadas dos reis envolvidos nessa batalha. No entanto, a forma inverosímil como essas pernas estão vestidas e adornadas com o que, à primeira vista, parece ser os restos das caudas dos cavalos, mas que de facto são perucas, remete-nos para uma dimensão lúdica que contraria a morbidez inicial. "Os cavalos também se abatem" é o nome da tradução portuguesa do livro do escritor norte-americano Horace McCoy, escrito em 1935, "They shoot horses, don't they?", cuja acção se passa durante a grande depressão ocorrida nos anos 30 nos EUA, quando uma imensa maioria da população carecia de uma vida digna, sofrendo com o desemprego. Foi nessa época que, entre outras oportunidades inusitadas, apareceram os concursos de dança, que testavam ao extremo a resistência dos competidores em troca de comida, roupas e prémios miseráveis. Por outro lado, existe uma clara referência territorial aos espectáculos equestres que existem actualmente em Marrocos, denominados "Fantasia", onde homens e cavalos recriam cenas de pinturas de Delacroix, inspiradas nos costumes locais e as vendem com intenções turísticas, num simulacro de veracidade.

Em Urna (2007), um pote de pó e cinzas onde se pode ler a inscrição "Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus" retirada do suposto túmulo de D. Sebastião, João Pedro Vale promove o retorno do corpo do rei que muitos acreditavam estar vivo e em peregrinação por terras longínquas. À vocação evangelizadora da guerra santa, o artista contrapõe a cremação enquanto ritual pagão, num desvio subtil e irónico, à vocação totalizadora das religiões.

A religião e o confronto de religiões estão presentes noutros trabalhos onde a descontextualização de símbolos é levada a cabo de forma quase absurda. Em Mekko (2007) vemos o artista em posição de oração islâmica voltado para oriente. Está nú na praia do Meco, a meca portuguesa dos naturistas. A série de trabalhos Ala'ad-Din (2007), que traduzido significa "nobreza da fé", é constituída por um conjunto de tapetes de inspiração marroquina onde os motivos naive da tradição berbere se misturam com siglas poveiras, uma proto-escrita primitiva existente na Póvoa do Varzim, com claras semelhanças entre si, ou não fossem as necessidades territoriais, religiosas e mágicas, ancestrais e comuns à condição humana. Costurados com guardanapos de papel e papel higiénico, apelam às diferentes concepções de pureza para as tradições ocidental e oriental, limpar os pés, para uma, isolar da terra impura durante a oração, para outra.

Em Stylo (2007), uma fotografia da mão do artista, o processo é idêntico. Primeiro vemos uma pintura de henne, típica nas mãos das mulheres árabes, depois percebemos que são desenhos de motivos de bordados de Viana feitos a esferográfica (stylo em francês), um objecto muito pedido aos turistas pelas crianças marroquinas sem que se saiba muito bem porquê.

O carácter bélico e de discordância religiosa que pautaram as relações entre Portugal e o norte de África através de alternadas políticas de ocupação e abandono, continua presente em No entanto ela move-se! (Mazagão) (2007). Depois de 1667, a cidade de Mazagão, que corresponde à actual cidade de El Jadida, continuava a ser o último bastião português no Magrebe, quer no apoio aos navegadores que faziam a rota do Cabo, quer como padrão simbólico da presença portuguesa. Em 1769, perante os frequentes ataques dos mouros, D. José e o Marquês de Pombal mandaram evacuar aquela cidade. As 2092 pessoas que nela habitavam foram levadas para a Amazónia no Brasil, outra região sob controlo português que necessitava de garantias de soberania, onde virão a fundar Vila Nova de Mazagão. A partir da imagem presente no frontispício do livro da época de Agostinho de Gavy de Mendonça "História do famoso cerco, que o xerife pôs à fortaleza de Mazagam defendido pelo valoroso capitão-mor dela Alvaro de Carvalho", João Pedro Vale constrói em sal uma escultura sobre rodas que representa a fortaleza de Mazagão em versão transportável. Uma construção fictícia e circular a que o artista acrescentou motivos da torre da mesquita de Marraquexe, da qual saem canhões que parecem prontos a disparar em qualquer direcção, em substituição dos altifalantes que chamam à oração presentes actualmente por entre os arcos das mesquitas.

O sal marítimo de que é feita a escultura adquire uma dimensão de branding, marca registada duma portugalidade feita de mar salgado, já presente nas Cruzes (2006), que consistiam em âncoras revestidas, uma com sal Mar Salgado e outras com caricas das marcas "Luso" e "Sagres".

Sob a forma de branding pobre de anúncios luminosos, feitas de tubos de luzes natalícias, aparecem as peças O Desejado (2007) e O Encoberto (2007), referentes a poemas de Fernando Pessoa, sobre o D.Sebastião, da obra "Mensagem", onde o autor retoma o tema do sebastianismo como sentimento patriota contra a decadência do contexto republicano em que a obra foi escrita. O livro foi publicado em 1934, após ter sido submetido ao prémio Antero de Quental, cujo júri era presidido por António Ferro, o criador da propaganda do regime salazarista. Trata-se de um livro que revisita e, em boa parte, cria, uma mitologia do passado heróico de Portugal, e que foi depois incorporada na ideologia oficial da ditadura de Salazar, fundador do Estado Novo em 1933, que se apropria da imagem do salvador presente no imaginário colectivo para melhor fundamentar a sua legitimidade.

20 escudos (2007) remete-nos para outro episódio do período inicial da república portuguesa, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul em 1922, concretizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, como se a ideia de cruzar os mares, desta vez num hidroavião, continuasse a ser a ambição última de um país hesitante entre heranças distintas, a europeia e a ultra-marina. A peça consiste numa reprodução miniaturial do engenho, revestido a notas de vinte escudos que apresentam como motivo o próprio hidroavião, numa tentativa de eternizar mais um feito heróico. Numa óbvia alusão à valiosidade da peça, da obra de arte, o artista ironiza mais uma vez sobre a atribuição de valor a uma nota de vinte escudos em plena economia euro, de um lado, o valor monetário, do outro, o valor da raridade.

Na continuação dos trabalhos que desenvolveu sobre a Nazaré, enquanto um dos últimos redutos de uma certa portugalidade, e dos quais apresenta Uma Fenda na Muralha (2006) e Ala-Arriba! (2006), (Quem não chora não mama, Casa d'Os Dias da Água, Lisboa) o artista elabora As Sandálias do Pescador (2007), uns típicos barcos da Nazaré transformados em sandálias, misturando vocação laboral e forte religiosidade dos habitantes locais, esta última enfatizada pela referência cinematográfica do título da peça. Na fotografia O Nazareno (2007) o artista aparece com as sandálias calçadas, novamente em frente ao mar, como se de um postal típico se tratasse.

Uma Fenda na Muralha (2006) é uma instalação sonora feita a partir de uma gravação sonora de um concerto com um grupo de mulheres da Nazaré que mimetizam a tradição das carpideiras nazarenas, tradição mediterrânica associada às mulheres. O título da peça é a expressão que designa o súbito amansar da sétima onda que permite aos barcos chegar à praia, sendo igualmente uma referência ao livro com o mesmo nome de Alves Redol, escritor neo-realista português do século XX, onde numa mistura de preocupações sociais sobre a vida dos pescadores da Nazaré se vislumbra o carácter pitoresco e turístico onde a vida desses homens fica ofuscada. Existia em Alves Redol uma preocupação pelo retrato social quase no sentido antropológico do termo, onde a ficção era um reflexo que se queria fidedigno da realidade.

Ala-Arriba! (2006 apresenta outra visão da vida dos pescadores, o filme homónimo que Leitão de Barros realizou em 1942, vencedor de um prémio no Festival de Veneza do mesmo ano, tendo esse facto contribuído muito para a imagem do país no estrangeiro. O tom é assumidamente de exaltação do estoicismo das gentes do mar. Esta visão ingénua da vida de miséria material e humana, foi de imediato apropriada por António Ferro e pelo Estado Novo de Salazar, como epopeia heróica de um povo. Para o seu vídeo, João Pedro Vale filmou um grupo de elementos do rancho folclórico "Velha Guarda" da Nazaré enquanto estes desempenhavam o seu papel de agentes da cultura local, com danças, cantigas e alguns "quadros" da vida quotidiana. O resultado, ironia óbvia a um registo de pendor etnológico, apresenta essas cenas, agora executadas e filmadas no local de ensaios do rancho folclórico. A falta de referente espacial, o próprio tom jocoso com que toda a acção se desenrola, nomeadamente na recriação de uma cena de naufrágio, aliados à falta de som do vídeo e à semelhança da cor com o "Ala-Arriba!" de Leitão de Barros, dão ao trabalho um carácter absurdo, de coisa fora do tempo, uma representação possível de outras representações que o tempo e a vontade da ideologia dominante tornaram objectivas como realidade.

Cinco de Outubro é também o nome do último capítulo do livro "O Conde de Monte Cristo" (1844) de Alexandre Dumas, uma história de injustiça e vingança. No fim, ecoam as palavras do conde quando diz que toda a sabedoria humana se resume em duas palavras - Wait and Hope (2007). Diz ele.


Nuno Alexandre Ferreira
Abril 2007