João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
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A “Política da Identidade” entre a História e a Comunidade Miguel Amado
A “política da identidade” nasceu nas democracias liberais do pós-II Guerra Mundial na sequência da actuação dos movimentos reivindicativos dos direitos civis. Refiram-se, por exemplo, a segunda vaga do feminismo, o orgulho na condição homossexual e, na América do Norte, a emancipação das populações negras e nativas. Esta linha de acção visava a tomada de consciência das condições materiais de existência por parte dos oprimidos, capacitando-os a articular a sua opressão em função da própria experiência. Os indivíduos compreenderiam, então, a posição de inferioridade a si atribuída pelo grupo dominante como uma estratégia de manutenção de poder. Consequentemente, contrariariam tal circunstância através da afirmação do sentido do eu e de pertença a uma comunidade, reescrevendo a sua história. Por exemplo, debatendo a raça e o género, em geral, e a segregação baseada nestas variáveis, em particular, reagiriam aos valores reinantes.
A moral reaccionária distintiva do conservadorismo que marcava os EUA na década de 1980 potenciou a afirmação da “política da identidade” como instrumento crítico no campo da arte. No contexto de emergência da SIDA como doença civilizacional, um atributo decorrente da sua descoberta pouco depois da revolução de costumes das décadas de 1960 e 1970, as representações da sexualidade – especialmente da homossexualidade – afiguraram-se primordiais na recepção da “política da identidade” pelos artistas. A discussão acerca do “outro” deslocou-se, assim, para o terreno queer. Segundo esta perspectiva, o género, por um lado, e a orientação sexual, por outro, resultam de uma construção social, teoria denunciadora do determinismo biológico que sustenta a naturalização da divisão sexual do trabalho, em geral, e da diferenciação de papéis entre homens e mulheres, em particular.
O encontro de João Pedro Vale com a “política da identidade” mediou-se pelo pensamento, imprensa e meios de comunicação de massas como o cinema e a publicidade. O artista encara o binómio masculinidade/feminilidade para além dos quadros normativos vigentes através do camp, uma estilo surgido na década de 1960 que reconsidera o valor do kitsch entendendo o seu potencial irónico. A contradição comummente aceite entre kitsch e vanguarda, que salvaria a arte do declínio do gosto provocado pelo consumismo, desfaz-se quando uma imagem ou um objecto apelam ao olhar justamente porque negam a sofisticação que pretensamente os definiriam. A banalidade, o artifício ou a ostentação são qualidades que o camp valoriza não enquanto essência mas como estratégia de desconstrução do que não passa de sensaborismo típico de classe média apesar de avaliado como erudito.
João Pedro Vale comenta as visões do mundo subjacentes às micro-práticas e às grandes narrativas da sociedade contemporânea. O artista analisa a consciência colectiva e os sistemas de crença individual para abordar a “política da identidade”, releve esta da nacionalidade, da classe, da etnia ou do género. As suas obras exploram as mitologias da cultura popular, interpelando as tradições, as ideias feitas, os preconceitos e os comportamentos. Para as realizar, o artista inspira-se em imagens e objectos do imaginário ocidental – desde textos literários a provérbios, passando por lendas e factos históricos – e utiliza materiais do quotidiano com elevado valor simbólico como sabão, sal, caricas de garrafas de cerveja e maços de tabaco. As técnicas pós-modernistas por si empregues, entre as quais a apropriação e o jogo de palavras, alicerçam a derisão da sua atitude, assim ecoando a estética camp.
João Pedro Vale explorou, nos últimos anos, a relação entre história e comunidade sob o ângulo do homoeroticismo. Esta temática ocupa-o desde o início da carreira, mas a sua importância acentuou-se em projectos recentemente desenvolvidos com Nuno Alexandre Ferreira. O ponto comum a três destes projectos – “Moby Dick” (2009), “Enghlish As She Is Spoke” (2010) e “Ptown” (2011) – é a diferença cultural característica dos processos migratórios, cada um deles analisando a presença de emigrantes portugueses na costa leste dos EUA, especialmente de açoreanos no Massachusetts. Nestes projectos, foca-se a tensão entre marginalização e valorização da especificidade destas comunidades, tanto por parte do país, região ou cidade de acolhimento como pelos seus membros. Os artistas interessam-se pelas lógicas históricas de inscrição e apagamento de traços identitários como forma de integração, bem como pela memorialização de Portugal que a tal corresponde. A originalidade da sua abordagem reside na associação de elementos folclóricos desta dinâmica a menções à vivência gay, assim cruzando-se uma miríade de referências sociológicas.
A raiz de “Moby Dick” é a interpretação homoerótica do livro Moby-Dick; or, The Whale, de Herman Melville, publicado em 1851. Melville conta as aventuras de Ishmael a bordo do baleeiro Pequod e a saga da captura de Moby Dick, um feroz cachalote. De acordo com a perspectiva queer, o tratamento da amizade entre homens efectuado por Melville indicia o seu entendimento do casal masculino como uma força de progresso. Os artistas relacionam este ponto de vista com as alusões a marinheiros portugueses, nomeadamente caçadores de baleias oriundos dos Açores, constantes no romance. O projecto materializa-se num filme pornográfico homossexual cuja acção se baseia no tédio característico de uma viagem marítima, enquanto os seus cenário e adereços se compõem de esculturas e pinturas evocativas de um barco de pesca novecentista. Estas obras equacionam o desejo como fonte das relações humanas à luz de uma leitura alternativa de um clássico da literatura fundamental do imaginário ocidental.
Provincetown, também designada como Ptwon, é uma localidade de Massachasetts conhecida como lugar de veraneio homossexual mas definida, igualmente, pela “portuguesidade” legada por emigrantes açoreanos do século XIX. O ponto de partida do projecto é a arquitectura vernacular local, especialmente as barracas edificadas nas dunas que caracterizam a beira-mar de Provincetown, e a associação destas às habitações ilegais que povoam a costa portuguesa, uma marca arquitectónica do país. A primeira versão do projecto consistiu numa instalação alusiva a estas construções. Trata-se de uma tenda circular semi-aberta feita de postes em madeira pintada com várias cores, cordas e tiras em ganga. Complementou esta obra uma publicação auto-editada que reproduz fotografias, notas e outros materiais efémeros, assim simultaneamente constituindo um diário, um relatório e uma novela. Tanto metaforizando a intersecção dos espaços público e privado como parodicamente cruzando libertinagem e pitoresco, estas obras exprimem o espírito de Provincetown.
O ponto de partida de “English As She Is Spoke” é um absurdo guia de conversação português-inglês novecentista redigido por Pedro Carolino, um desconhecido cujo nulo conhecimento linguístico desaconselhava qualquer trabalho de tradução. Os artistas adoptaram esta lógica para criar uma “comédia de enganos” sob a forma de dois elementos: por um lado, um filme protagonizado por John, um jovem açoreano emigrante de segunda geração repatriado dos EUA/Canadá, e o seu interrogador, ambos compondo sketches alusivos tanto à estrutura de séries televisivas educacionais inglesas como da revista à portuguesa; por outro, um conjunto de esculturas e desenhos evocativos de ambientes prisionais e de contextos de aprendizagem que constituem o cenário do filme ou referenciam a iconografia dos Açores. No filme, as personagens conversam em português e inglês, com John a traçar uma panorâmica da sua biografia; porém, as suas falas traduzem-se mutuamente, instituindo um falso diálogo. Esta obra revela a crise existencial que assola a actualidade sob a capa da migração, chamando a atenção para o desenraizamento do sujeito enquanto eixo definidor da experiência moderna.
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