João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão

Michael J. Bullock

2017


É meia noite em Nova Iorque, nos princípios dos anos setenta. O tempo está perfeito. Um jovem homem faz a sua peregrinação iniciática às Rambles, o famoso parque de diversões ilícitas no Central Park, onde homens se juntam à procura de sexo ocasional. Apesar de assustado, ele está excitado e o seu intenso desejo sexual dá-lhe o foco que precisa para encontrar o seu destino. Abandonou a sua cidade natal apenas algumas semanas antes, com o propósito de recomeçar a vida nos seus próprios termos. A visita desta noite marca um rito de passagem essencial para a sua identidade homossexual. À medida que se aproxima da oresta repara num labirinto de trilhos traçados pelos seus semelhantes que, pelas mesmas razões, vinham fazendo aquela mesma caminhada desde os anos vinte. Enche os pulmões de ar, preparando-se para mergulhar na utopia sexual comunal que o espera e da qual tinha ouvido falar. Através da escuridão identi ca silhuetas de homens aos pares ou em grupos, comprazendo-se anonimamente nos corpos uns dos outros; ao ar livre, no espaço público, na natureza. Através da folhagem, ouve ruídos de prazer e gemidos de satisfação. Bem-vinda, a mão de um estranho esfrega-se entre as suas pernas. A sensação electri cante alteia-lhe o ânimo, abrindo as comportas para uma liberdade que nunca havia experimentado. Quebrando o tabu, o poder deste momento sobrepõe-se a toda a censura e reprovação que havia sofrido às mãos daqueles que até então o haviam classi cado como um pecador miserável. Muito mais do que a satisfação de um desejo, esta noite é o cruzar de uma barreira psicológica. No lugar onde cresceu, a sua sexualidade era considerada imoral, perigosa e desviante; um acto contra deus, contra a família e contra a natureza. Mas aqui, no engate esta crítica é invertida: o seu corpo não é olhado com desprezo, nestes bosques escuros ele torna-se num objecto de adoração e desejo. Agora, o prazer sexual era acompanhado pela dejecção da vergonha e pelo irromper de uma sensação de pertença que empodera uma identidade até então reprimida.

Ainda que o sexo no espaço público continuasse a ser um acto ilegal, as cidades americanas dos anos setenta (no período entre os motins de Stonewall em 1969 e o surgimento da SIDA em 1981) viveram o auge de uma arrojada idade dourada do cruising, marcada pela celebração deste acto no trabalho de importantes artistas. Em Nova Iorque: John Rechy dá o tiro de partida com o seu notável romance City of Night (1963) que apresenta o cruising nas costas oeste e leste americanas, incluindo uma cena nas Rambles. A fotogra a de Alvin Baltrop documenta obsessivamente os famosos cais em Chelsea . O livro de John Giorno, You Got to Burn to Shine (1993), descreve uma cena de sexo anónimo praticado por ele durante este período, com um jovem nas casas de banho da estação de metro de Prince Street (este jovem, descobriu-se mais tarde, era o artista Keith Haring e este texto inspira uma obra nesta exposição, com o título Great Anonymous Sex). O trabalho produzido pelo próprio Haring durante este período inclui uma diversidade de desenhos representando sexo em grupo; uma peça em particular, com o título Glory Hole (1980), apresenta o cruising como uma experiência transcendente.

Na Costa Oeste americana: os desenhos de Tom Finland, o artista de naturalidade Finlandesa (que dividia o seu tempo entre o seu país natal e Los Angeles), focavam-se no tema do cruising. Tom preferia representar o cruising ao ar livre porque sentia que mostrar actos homossexuais na natureza permitia que os gays pensassem sobre eles próprios como naturais, quando a sociedade heterossexual, apoiada pela religião, aproveitava todas as oportunidades para lhes dizer o contrário. Também neste período, a América produziu um ícone do cruising no fabuloso auto-retratista de origem alemã, Armin Hagen Freiherr von Hoyningen-Huene, que se mudou para a desenfreada meca queer que era a São Francisco dos anos setenta para poder transformar-se no seu alter ego: Peter Berlin. A energia e a produção artística em torno do cruising, um acto que apenas duas décadas antes era considerado tão incivilizado que não era possível falar sobre ele em público, era tão relevante que em 1980 o famoso realizador William Friedkin (Incorruptíveis Contra a Droga, O Exorcista) adaptou o romance de Gerald Walker, Cruising (1970) para um lme mainstream com o mesmo título. O lme conta com a interpretação de Al Pacino, que faz o papel de um jovem detective a quem é atribuída a tarefa de se in ltrar na cena gay leather do underground nova iorquino. O lme choca a América, expondo particularidades da vida gay que a maioria dos americanos não imaginava existirem (incluindo o cruising nas Rambles).

Em Portugal os homossexuais ouviam falar sobre o movimento de libertação gay nos Estados Unidos enquanto sofriam em silêncio e isolamento, sob o peso de uma ditadura violenta, um regime que negava a própria existência da homossexualidade; chegando ao ponto de nem a palavra «homossexual» ser utilizada em documentos públicos. No período de Salazar e Caetano (1932-1974) a maioria dos traços da homossexualidade foram apagados, di cultando o registo de uma história e a formação de uma identidade gay travando efectivamente o desenvolvimento da cultura queer em Portugal. Seria então lógico deduzir que, durante este período, o cruising era impossível em Portugal por implicar castigos demasiado severos. Era disto que os artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira suspeitavam até depararem com um aviso público dos anos cinquenta, do qual extraíram as expressões que dão o título a esta exposição (mas também a uma das peças que a compõem): A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão. Este é um aviso que criminaliza o cruising utilizando uma linguagem extraordinariamente sinuosa, evitando nomear qualquer anatomia, actos ou orientações sexuais. O documento sugere que até o mais organizado regime fascista tinha di culdade em controlar com e cácia a conduta sexual das pessoas. Este artefacto histórico inspirou o duo a desenvolver um projecto que imagina, reclama e reconstrói este período não registado de vivências queer, convidando-nos a re ectir sobre o impacto da ditadura nas práticas queer contemporâneas em Portugal.

A escultura A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão é uma coluna azul-marinho que se ergue do chão ao tecto, feita a partir de centenas de pares de calças de ganga. Cada par homenageia um homem que viveu sob o jugo da ditadura, mas escolheu revoltar-se contra as suas leis. Estes homens arriscaram os seus empregos, a sua liberdade e as suas famílias para concretizarem o seu desejo por pessoas do mesmo sexo. É através destes actos colectivos de resistência que a vida começa a crescer. O tronco de uma árvore emerge, ainda que sob o espectro omnipresente da punição em que estes actos incorriam. Neste tronco é a xado o aviso público, lembrando que serão brutalmente reprimidos todos aqueles que forem apanhados a a rmar as suas próprias vidas através desta actividade sexual. Tendo isto conta, esta coluna em forma de tronco de árvore pode, paradoxalmente, também ser vista como um pelourinho.

As esculturas Vadios e Take Ecstasy with Me [Toma Ecstasy Comigo] apresentam-nos ambas formas arquitectónicas à escala humana que estabelecem uma relação entre o espectador e o acto de engatar. Em Vadios, uma estrutura circular com oito unidades é parcialmente tapada por meia parede circular. A participação do espectador completa o trabalho, uma vez que este é convidado a utilizar o espaço da peça; Vadios, um termo que signi ca vagabundo ou malandro, e que era utilizado para designar os homossexuais em todos os documentos legais produzidos durante o período em que actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram ilegais (1912- 1982). A forma desta escultura encoraja os participantes a caminhar para o seu centro e escolher uma cabina privada. Estes pequenos espaços são perfumados com o aroma de nitrato de amilo, uma substância que é consumida por inalação e geralmente conhecida

entre a comunidade gay como Poppers, muito utilizada para ampliar a sensação de euforia durante o acto sexual. Nas paredes, foram recortados pequenos buracos circulares à altura aproximada da virilha, permitindo a comunicação entre as salas contíguas. Estes «Buracos da Glória» convidam o visitante a envolver-se em actos públicos de liberdade sexual. O desenho desta peça é uma homenagem à teoria formulada por Foucault sobre o Pan-óptico, um conceito que pode ser assim resumido: temos a liberdade de agir, mas auto-regulamo-nos porque não sabemos quem nos está a observar; a repetição deste processo conduzir-nos-á eventualmente a interiorizar a censura, transformando-nos nos nossos próprios censores. Esta estrutura oferece-nos uma simulação simbólica da experiência do cruising durante a ditadura, dando-nos a possibilidade de superar os nossos mecanismos de auto-censura em troca de prazer sexual. As paredes desta escultura estão cobertas de graf ti queer e uma selecção de textos de poetas portugueses, entre os quais, Judith Teixeira, António Botto e Raul Leal. Estes são os poucos artistas que ousaram produzir trabalho com subtexto gay, pagando o preço de verem os seus livros apreendidos e queimados em 1923, no incidente que cou conhecido como os «Poetas de Sodoma».

Take Ecstasy With Me aponta para um aspecto completamente diferente do cruising na vida portuguesa contemporânea. A peça inverte literalmente um urinol portátil, utilizado em festivais de música, colando-o ao tecto. Escultóricos em si mesmos, na vida real estes objectos oferecem uma oportunidade não intencional para o cruising. Nesta encarnação, a sua forma foi revestida com cloreto de cobalto (II), uma substância associada aos populares “galos do tempo” portugueses, (que ca azul ou cor-de-rosa dependendo do nível de humidade do ar. Tipicamente masculino, este objecto move-se agora com uidez entre cores que representam a relação binária entre os géneros masculino e feminino. Esta uência permite contrariar os papéis que normalmente são aceites como os papéis sexuais dominantes (masculino) e submissos (feminino). Trazendo ainda mais elementos queer para o espaço agressivamente másculo e adolescente do festival de música, a inversão deste objecto sugere o esvaziamento do seu depósito de urina, que se estivesse cheio criaria uma «chuva dourada», um termo da subcultura fetiche utilizado para descrever o acto de urinar sobre o corpo de outra pessoa, ou ter outra pessoa a urinar sobre si próprio na procura de prazer sexual.

A selecção de novos trabalhos que constituem a exposição A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão analisa o impacto identitário que o movimento de libertação gay na América teve em Portugal e a sua importância para uma população queer que, reprimida no passado, hoje prospera. Esta é uma exposição que sonha com o passado sem registo do cruising em Portugal, que examina o seu presente e explora as suas contribuições para a história e cultura queer. Mas qual é a relevância do cruising hoje, quando os jovens portugueses cresceram numa cultura na qual podem encontrar, muito literalmente, sexo na ponta dos dedos, nos seus telefones através de aplicações como o Grindr e o Scruff. Perguntando a João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira se o cruising continua a ser um acto queer revestido de importância, João Pedro responde «De nitivamente, porque é público, o cruising é uma arma importante contra um sistema que não se poupa a esforços para homogeneizar as pessoas queer, conformando-as às normas heterossexuais de conduta e associação sexual. O cruising implica desprendimento, porque uma vez que decides participar na actividade és forçado a deixar algumas decisões ao acaso; há a arquitectura, a oportunidade e a possibilidade de te surpreenderes com um encontro agradável com alguém que pode não ser “o teu tipo”. O cruising online é privado, o cruising no espaço público é comunal!». Nuno acrescenta «O cruising ainda é um acto de a rmação política, quebra barreiras raciais e classistas e destrói a ênfase capitalista e egocêntrica que as apps de sexo colocam na perfeição. Põe em causa aquilo que, por vezes, pode tornar-se numa tirania da auto-seleção. Mesmo não participando pessoalmente na zona de cruising da Costa da Caparica, sinto-me mais livre por saber que este espaço existe. É um espaço que mantém abertas as fronteiras da minha identidade e liberdade sexual.»