João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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REVOLUCIONÁRIO, LOUCO, SUICIDA, ARTISTA, ARTISTAS

Alexandre Melo

2016



Felizmente, os autores do filme e da exposição que aqui me compete apresentar concederam pouca importância à patética narrativa pseudo-romântica do famoso livro do jovem Goethe e do seu irritante protagonista. No filme, retenho a cena de abertura e a evocação da loucura ou da fantasia como formas de superação do contexto social.

Duas citações permitem, de algum modo, ancorar no livro o tópico irracionalista.

“ Concentro o espírito em recolhimento e encontro nele um mundo de pensamentos ... ou antes de percepções confusas e de vagos desejos ... Não são raciocínios, ainda menos projectos de acção, mas intangíveis sonhos que me flutuam ante os olhos e nos quais gostosamente me perco ” (p. 18/19).

“ Será então destino do homem só ser feliz antes de possuir o uso da razão e depois de o perder ? Pobre louco ! Quanto invejo a tua loucura, a tua perturbação dos sentidos ! “ (p. 142/143).


Quanto à cena de abertura, recreando o suicídio de Werther, tem sobretudo um valor estético e formal (veja-se o jogo de cores das roupas) que antecipa as opções estéticas do filme. Destaque para os ténis Nike, numa alusão aos ténis Nike Decade (1993), usados pelos 39 membros da seita “Heaven'sGate” quando cometeram um suicídio colectivo em Março de 1997.

Desde logo o título remete menos para a personagem de Werther do que para o “efeito Werther”, uma noção criada por David Phillips em 1974 para designar um conjunto de suicídios que podem ocorrer na sequência do suicídio de uma pessoa famosa. David Phillips designou desta forma o fenómeno, tomando como exemplo a sucessão de suicídios cometidos de forma que pareciam copiar a morte do protagonista da novela de Goethe após a publicação do livro.

O fio condutor da minha aproximação a estas obras é a noção de “utopia”.

Querendo ser redundante poderia dizer “utopia impossível” : o conteúdo de uma utopia, por definição, é algo não é possível (se fosse, não era uma utopia, era um plano). Prefiro dizer que é a própria forma conceptual da noção de utopia que deixou de ser possível.

Para justificar esta afirmação vamos sondar algumas das formas terminais da experimentação dos limites da possibilidade de convocação da noção de utopia Comentaremos três formas : o Revolucionário, o Louco e o Artista.

As ações dos 4 protagonistas da história que “Werther Effect” nos apresenta podem começar por ser vistas como tentativas de subversão radical e ultrapassagem dos limites das convenções sociais determinadas pelo chamado “sistema”. Aqui se afirmaria uma dimensão revolucionária que, neste caso, se desenvolve sobretudo na via da valorização da atividade sexual, nomeadamente através do recurso a uma pluralidade de drogas capazes de assegurar a persistência da sua pertinência programática e da sua intensidade física e mental. O sexo como forma de libertação e revolução, um pouco ao jeito dos delírios de Wilhelm Reich. O líder do grupo, ausente, é chamado Guilherme, tal como o destinatário das cartas de Werther. Não será necessário explicitar os limites deste tipo de atividade revolucionária (que poderia situar-se, com algum abuso caricatural, no âmbito do que Álvaro Cunhal, num outro tempo, chamou “Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista”).

Para evocar mais uma tríade, lembremos a “Droga Loucura Morte” da primeira campanha oficial portuguesa (ainda no tempo da ditadura, fase Marcelo Caetano) contra o consumo de drogas. Como seria de esperar, os sugestivos cartazes acabaram por ser adotados, à época, como materiais promocionais da referida “droga”.

Importa assinalar - no modo como se desenha o esgotamento da dinâmica revolucionária do nosso grupo - que o fator que precipita o fracasso é o desaparecimento do líder carismático e a orfandade ideológica, afetiva e sexual a que ela condena todo o grupo. Sem o líder carismático que assegura a identificação e a gratificação desejantes nada tem sentido e não resta nada para fazer. Talvez não seja por acaso que (quase) todas as experiencias revolucionárias se esvairam através do culto de um ditador carismático sustentado por formas cada vez mais degradadas de corrupção e repressão massivas. É por isso que o problema da sucessão dos ditadores é (quase) sempre trágico.

Em “Werther Effect”, o Revolucionário transforma-se em Louco, talvez à espera de ser recolhido por extraterrestres ou, na ausência destes, talvez em Suicida.

Mas há uma outra dinâmica utópica suscetivel de, a seu modo, assumir uma intenção revolucionária. Falamos do Artista.

É esta a componente mais importante deste filme e desta exposição. As referencias à teoria das cores de Goethe e aos trabalhos de Oskar Schlemmer, com a Bauhaus e Weimar como pano de fundo, enquadram um admirável trabalho de construção de esculturas, composição de coreografias, concepção cenográfica, direção de luzes e (na exposição) produção de pinturas (pintadas ou bordadas).

As pinturas - que não aparecem no filme mas podemos ver na exposição - são inspiradas em posters de Herbert Bayer para a exposição da Bauhaus em Weimar, 1923 ou, no caso dos “Urplanze”, 2013/16, em embalagens de drogas sintéticas, daquelas que se compravam, baratas, nas smartshops, como adubos para plantas.

A maioria dos objetos apresentados são indissociáveis das coreografias. São objetos escultóricos para vestir e usar no âmbito de coreografias a que, no contexto das artes plásticas, se poderia chamar performances. Importa sublinhar que são objetos construídos para terem uma relação direta e instrumental com os corpos humanos.

Nas coreografias (vejam-se Schlemmer e a Bauhaus) manifesta-se uma aparente contradição entre os delírios libertários do discurso do grupo e a vocação sistémica e geométrica (chamemos-lhe assim) dos movimentos. O paradoxo é real e remete para a pitoresca ideia de alguns modernismos da primeira metade do século XX segundo a qual (simplificando) a geometria ( “ Ponto Linha Plano ”, à moda de Kandinsky, mais coisa menos coisa) ia salvar o mundo.

Alguns objetos que não se articulam diretamente com as coreografias servem a concepção cenográfica e integram referências à “Wassily Chair” de Marcel Breuer e a uma mesa de Eileen Grey.

Destaco a importância da parede, suporte de intensos efeitos cromáticos, já que o trabalho de direção de luzes (são luzes reais como no teatro e não efeitos de pós produção digital) tem um papel decisivo na construção do ambiente geral do filme e, sobretudo, na indução da interpretação dos sucessivos discursos, variando as cores consoante o tom das declarações enunciadas.

A maior riqueza do trabalho dos autores - tal como se manifesta neste filme e nesta exposição - reside na capacidade de instituir uma “atmosfera utópica”, que se desdobra em múltiplas formas de estímulo e propagação da imaginação produtiva : criar possibilidades de imaginar ideias, objetos, espaços, cenários, sons, discursos, movimentos. Não são as formas que libertam. Não são as luzes que libertam. Não são as ideias que libertam. O que liberta os poderes da imaginação criativa (o que liberta o poder da liberdade, passe a inevitável redundância) é a criação de uma atmosfera produtiva que alimenta, de modo sempre renovado, expansivo, a capacidade de produzir isto ou aquilo ; ou, mais exatamente, tudo o que se quiser.

“ Ainda há muita merda para fazer “. Sem esquecer o significado da palavra “merda” no contexto teatral.

Isto poderia ser uma descrição da dinâmica do trabalho de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, uma dinâmica de trabalho cooperativo que gera uma lógica de comunidade no trabalho de estúdio ou, neste caso, no trabalho das filmagens : os protagonistas são também atores (aliás designados pelos seus nomes próprios) que estão a inventar o seu trabalho de atores.

Já não o Artista mas os Artistas.

O sentimento de comunidade inerente a este tipo de prática do trabalho artístico não deixa de poder ser visto como um eco muito distante do apelo à unidade na ação das classes trabalhadoras que outrora esteve na origem das melhores aspirações ou intenções do pensamento revolucionário.