João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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CRU, CLARO

Se, como em tempos defendeu Dan Cameron (curador da muito comentada exposição the raw and the cooked), a obra dos artistas se pudesse dividir entre exemplos crus e cozidos, os trabalhos de João Pedro Vale situar-se-iam claramente na primeira categoria. É que o artista não só tem vindo a preservar o aspecto dos materiais que emprega (sabão é sabão, pastilha elástica é pastilha elástica, santinhos são santinhos, pão é pão…), como estes elementos correspondem sempre a signos identificáveis, parte de um património cultural comum e cujos sentidos são quase imediatamente reconhecíveis. A armadilha está montada: depois vem um insidioso trabalho de manipulação desses signos, que serve para comentar, não sem ironia, e longe de moralismos ou esquematismos, os mitos e lugares-comuns que sedimentam e estruturam determinadas formas de organização social e política, que vão desde a identidade sexual à ideia de pertença cultural e nacionalista. João Pedro Vale utiliza recorrentemente imagens e matérias que conhecemos muito bem (refrões, ditados, iconografia popular e religiosa), constituindo-se cada sua nova obra como uma imensa caixa de ressonâncias em que a velhas formas, que convocam um particular sentido cultural, são acrescentados significados outros – muitas vezes aspectos latentes mas reprimidos, ou recalcados. Acrescente-se que as suas esculturas têm a particularidade de impedir exemplarmente qualquer separação entre forma, matéria e conteúdo. A adequação entre partes é de tal forma aguda que uma simples permuta de materiais significaria a destruição da obra. Isto só é possível porque para este artista a forma já é conteúdo, e porque, como referi, o facto de utilizar um determinado material deve convocar imediatamente uma série de significados, imagens, protocolos e ideias feitas.

As últimas peças de João Pedro Vale caracterizam-se por uma particular atenção ao desfasamento, ao anacronismo. Se nas suas esculturas mais antigas se organizavam signos de uma cultura iminentemente urbana, o artista tem vindo nos últimos anos a forjar novas possibilidades de relação com formas e imagens caducas, e que se relacionam com o folclore e com a nossa iconografia popular e religiosa – principalmente com a forma como a imagem de Portugal foi e é vendida (e onde aparecem e se mesclam religião, arquitectura e, é claro, um certo heroísmo bacoco ligado às façanhas das descobertas). Compreende-se portanto que o desafio que foi lançado a vários artistas – pensar um azulejo sob a temática do fado – já continha, no caso particular de João Pedro, o princípio que tem motivado muito do seu trabalho: a ideia do genuinamente português e sua relação com formas à partida desfasadas, aqui plasmadas no revestimento azulejar, emblemático da nossa arquitectura e exaustivamente utilizado ao longo de cinco séculos (e que ocupa grande parte dos bilhetes postais para turista), e no Fado, símbolo máximo, equivocado ou não, da música popular portuguesa.

Uma qualquer iconografia relacionada com aquela expressão musical não é, no caso do projecto de João Pedro, inscrita de forma mais ou menos ilustrativa num suporte que por acaso é uma placa de cerâmica pintada e vidrada numa das faces que se aplica comummente no revestimento arquitectónico. O artista consegue que azulejo e Fado se articulem intimamente, ao ponto da forma (azulejar) exprimir já conteúdo, porquanto aponta imediatamente – e ainda mais se, como é o caso, ligada a outro signo de tipificação – para uma determinada ideia de mito cultural e de emblema nacional. Hábil confiscador de imagens, o artista agarra naquelas duas formas anacrónicas (no sentido em que às tantas se traduziram em formato postal, em logótipo quase) e prolonga-lhes a vida, ao mesmo tempo que salienta aspectos que uma certa história preteriu e recalcou.

O Fado esteve durante muito tempo ligado a um estigma de marginalidade (associado à boémia e à ebriedade) e até meados do século XIX confinava-se a determinados bairros populares – Mouraria, Alfama, Bairro Alto –, sendo um género musical pouco respeitável. Não é difícil imaginar que alguns dos seus primeiros protagonistas associassem a aura de marginalidade conferida pela execução daquela música com a ostentação de tatuagens. E para este seu projecto, João Pedro Vale fotografou uma tatuagem que desenhou e que foi de facto inscrita em pele (por acaso de porco) – e esta utilização da fotografia é uma forma inteligente de sublinhar a ideia de fragmento arrancado a uma totalidade, exactamente como um azulejo, quando isolado, remete para a ideia de grande conjunto (concebido historicamente para ser visto em painéis, perde significado enquanto peça individual).

O desenho tatuado corresponde a um coração ensanguentado, atingido por diversas setas e rodeado por uma faixa onde se lê Fado – e repare-se que o carácter indelével deste desenho (fez-se, é para sempre) se pode ligar a um lado sentimental e fatalista do Fado, que canta reiteradamente a impossibilidade de apagamento das dores da alma. Mas o motor deste trabalho, e a mais fina das ironias, é que mesmo lidando com o típico do típico, com dois dos mitos culturais mais divulgados, o artista consiga apontar para momentos perdidos na história social, associando insidiosamente o que, em princípio, não poderia estar mais longe: bilhete-postal e estigma social. O tipo de emboscadas caro a João Pedro Vale.

Ricardo Nicolau, Março 2005