João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
Skip Navigation Links.
 
Objecto de Fronteira

O trabalho de João Pedro Vale tem assumido uma matriz escultórica desde o seu início, embora recuse as características tradicionais ou modernistas desta, sobretudo a procura de uma especificidade capaz de definir uma essência da própria noção de escultura. Muito pelo contrário, o seu trabalho diverte-se a subverter qualquer definição possível para o próprio médium e joga a prática escultórica no encontro de situações exteriores e muito diversas. As suas esculturas lidam com os objectos do quotidiano para os interrogarem com humor e alguma perversidade. O encontro com estes e os seus usos, a particularidade de um lugar ou o travestimento de um objecto por uma qualquer substância de conotações precisas em termos de significação e uso social, devolvem à escultura uma dimensão analítica da complexidade ideológica que os seus materiais comportam, senão mesmo crítica da mercantilização do valor do signo do objecto.

Português Suave (2002) é uma escultura que aborda uma arquitectura que se tornou emblemática de um contexto e eventualmente paradigma de uma atitude socialmente reactualizada. Assim, o castelo de papelão assente sobre rodas e com uma pega que permite o seu manuseamento e deslocação, é facilmente reconhecível por qualquer português ou alguém familiarizado com a paisagem romântica da Serra de Sintra. Trata-se de uma citação irónica dos aspectos mais reconhecidos do Palácio da Pena. Este palácio foi mandado construir pelo rei consorte D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha (1816-1885) como presente para a sua esposa, a rainha D. Maria II. Um extremo ecletismo de estilos e referências históricas que vão do gótico ao manuelino, passando pelo mourisco e o oriental, numa amálgama romântica que sonha a história fora dos seus contextos, compõe a sua arquitectura, desenhada por Wilhem Baron von Eschwege, o mesmo engenheiro prussiano que construiu o castelo romântico de Neuschwanstein para Ludwig II da Baviera. O destino deste foi romanesco, turístico e por fim a Disneylândia, demasiado característico da modernidade em que nasceu. O Palácio da Pena tornou-se um ícone da Sintra romântica, já assim entendida pelos versos de Byron, partilhando com estes o mesmo desdém pelo contexto cultural português. Aceite pelos artistas românticos portugueses como emblema de uma vontade de superação de uma condição cultural encerrada num impasse, o Palácio da Pena acabou por se tornar numa das arquitecturas de referência do período num Portugal que, à falta de uma capacidade dialógica e participativa num novo mundo moderno, passou a importar indiscriminadamente. Este fenómeno sucedeu noutros níveis socioculturais e por diversos períodos. Com os grandes surtos de emigração e respectivos regressos, tipologias muito diversas de arquitecturas de outras latitudes foram substituindo radicalmente as arquitecturas vernáculas. Durante a ditadura fascista e no âmbito da Política do Espírito promovida por António Ferro e Oliveira Salazar nas décadas de 1930 e 1940, foi feita uma tentativa de definição de um estilo moderno genuinamente português, recuperando para tal uma grande diversidade de elementos morfológicos de estilos e épocas muito diversas que, transferidos para materiais modernos, ficcionavam uma identidade para a arquitectura portuguesa. O estilo ficou conhecido por Português Suave, numa dupla alusão a uma conhecida marca de cigarros e ao sentido denotativo da expressão que, fazendo uso do adjectivo qualificativo “suave”, caracteriza a imagem que o fascismo português pretendia dar de si em reacção a tudo o que fosse modernidade.

Esta escultura de João Pedro Vale, ao apropriar para o seu título esta designação, cria uma declarada tensão entre as realidades que confronta: uma pretensamente nacionalista, que não deixa de se identificar com alguns elementos que também von Eschwege citou no seu palácio; outra puramente eclética, a do próprio Palácio da Pena, em estilo internacional, cujo destino é o não-lugar de um consumismo de uma era moderna que involuntariamente anuncia. As rodas adicionadas à maqueta não podiam ser mais explícitas sobre o deslize subjacente a qualquer pretensão identitária. O revestimento padronizado das fachadas é feito a partir dos maços de cigarros Português Suave. O seu efeito lembra o revestimento azulezar característico de alguma arquitectura portuguesa, principalmente as realizadas nos períodos de retorno da emigração. O azulejo português, nestes casos, é integrado num modelo arquitectónico híbrido de múltiplas referências internacionais e que, quando construído, funciona como signo de afirmação e ascensão na escala social, através da quase supressão da memória ou do anterior contexto. Que, no início da era moderna, o Palácio da Pena anuncie este destino tão comum para os portugueses do seu final, supõe-no ainda esta escultura de João Pedro Vale. A sobreposição das várias ficções encontra neste objecto o seu lugar de negociação e a sua condição nómada traz de volta uma ausência que caracteriza uma cultura de fronteira.