João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
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É a verdade que a oculta que não há verdade 1
Oscar Wilde, o supremo pontífice da ironia, ao ser indagado com quê contentava-se, numa frase lapidar, revelou contentar-se com muito pouco, “apenas o melhor, meu caro, respondeu”. A importância da ironia na obra wildeana converteu-se no seu epíteto. Agudo, intenso, ferino, refinado, assim amigos e inimigos referiam-se ao escritor irlandês, afinal este escolhia seus amigos pela beleza e seus inimigos, pela inteligência. Inteligência e ironia viram sinônimos nas mentes de grandes estetas, como Shakeaspeare, Molière, Wilde, Samuel Beckett, George Bernard Shaw, Luigi Pirandello, Nelson Rodrigues. Quanto o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido para os ressentidos, ou a ironia para os inteligentes. Pura paródia, helás! O debut da ironia na sociedade ocidental dá-se com as diatribes do filósofo Diógenes de Sínope ao enfrentar a lógica socrática com o sorriso da lógica cínica. Para Diógenes o absurdo da vida, feita de pequenos sofismas, deveria ser encarado com sorriso. No famoso quadro de Rafael (Escola de Athenas) o filósofo aparece reclinado na escadaria da Academia, onde lê absorto, enquanto os senhores das verdades enfrentam-se na arena dos aforismas.
Tal qual a filosofia, o teatro parece ser o veículo ideal para a ironia cavalgar nas selas da verdade, pois como tal é um simulacro da vida, congelada num espaço-tempo, daí “a importância de ser honesto” e rir-se da “comédia de erros” da vida quando, enfim, não há “nada a fazer”. Se o teatro necessita da palavra, do enunciado, para fazer sentido, as artes plásticas recorrem as imagens como indício do não dito, porém entendido. A história dos costumes, i.e. a história da visualidade ocidental, foi constituída como um animal híbrido – um centauro, uma gryphus, um minotauro - metade palavra, metade imagem, parafraseando Harold Rosemberg. Metade da visualidade ocidental é oriunda das narrativas. Na Grécia, os artistas usavam as descrições épicas; a era cristã, às parábolas bíblicas; Renascimento, ambas; Na era moderna, sobretudo no Iluminismo, as descobertas científicas, os relatos de viagem e os jogos sociais constituiram-se bases narrativas para construção da visualidade. Foi na modernidade que buscou-se construir uma visualidade utópica, derivada das idéias. Na era atual, pós-moderna, o paradigma é o simulacro; A nova ordem mundial, em temos de representação, é o da cópia paródica ou alegórica dos mitos do passado.
Perseguindo a lógica baudrillardiana de que “o simulacro não é o que oculta a verdade. É a verdade que a oculta que não há verdade. O simulacro é verdadeiro”. Pensando nesta lógica, a assertiva é de que a arte atual converteu-se não somente numa arena de auto-fagocitação narrativa, mas também irônica, quando passa a citar o passado, os costumes, e também a própria arte como representação de si mesma, através do simulacro. Na arte norte-americana, Jeff Koons e Matthew Barney são exemplares de artistas que melhor entenderam a questão do simulacro. O genius loci em Koons e Barney aparecem nas apropriações do grand guignol que é a sociedade norte-americana. O esporte e o glamour do cinema, estes são a imagerie símbolo da americanização, ou daquilo que é veículado como tal. Ambos lutam pelo lugar ideal usando o pastiche e a ironia como reflexão. No entanto o humor das obras destes artistas é aquilo a que chamamos de camp, termo dissecado por Susan Sontag. O camp é o filho bastardo do kitsch europeu e, como tal, explicam-se. No contexto norte-americano, o simulacro é uma arma poderosa de valorização da cultura local.
As divagações preliminares sobre ironia, inutilidade da arte, kitsch versus camp, levam-nos até a obra de João Pedro Vale. Assim como alguns artistas de sua geração, a sua opção pelo simulacro é a forma de posicionar-se culturalmente, apontando indícios da sobre-valorização de aspectos históricos que ao seu ver são demasiados caricatos ou risíveis. A ironia expressa em suas obras, geralmente simulacros da cultura portuguesa, serve de moeda de troca. JPV parece dizer-nos que rir-se de si mesmo é a melhor maneira de se entender a cultura onde se está inserido. Como manda os preceitos do “quanto mais local for, mais universal será”, João Pedro Vale, apropria-se de ícones locais como as tradições folclóricas, os ditos e normas populares, as peças símbolos de uma colonização vencedora, entre outras valores locais, que são recriados num contexto de mais pura ironia. Tal como uma boa canção pop, i. e. curta, certeira, sem firulas, straigth to the point, as obras de João Pedro Vale são peças da mais fina ironia.
Mesclando alta e baixa cultura - para desespero dos puritas adornianos emperdenidos -, João Pedro Vale apropria-se dos ícones locais para fazer um comentário sobre a condição da sociedade, dos valores tidos como verdadeiros ou o simbólico que acompanham sua existência. Na sua obra a religião, a educação, o esporte, a sexualidade e as tradições (e contradições) da sua sociedade são discursos mais óbvios. Porém, atenção quão falso é o brilho de uma superfície doirada. Como diz o dito popular, “nem tudo que reluz é ouro”...Um percorrido pela sua trajetória, deparamo-nos com obras que aludem tanto à sua realidade histórica, mas também ao universo do cinema - repleto de heroínas, super-heróis, figuras ilustres, mitos e estrelas de cinema -, ou dos contos infantis. João apropria-se destes personagens, sexualiza-os, desmascara-os, potencializa suas virtudes e defeitos, sempre pelo viés da ironia inteligente.
A ironia foi a arma para o artista combater a mediocridade latente. Ela aparece já nas obras do seu período escolar. Na obra S/Título, João realiza uma projecção de vídeo sobre folhas de papel, onde a participação do espectador é o dado mais substancial. O artista exibe dois rectângulos com as mesmas medidas, um deles recebe uma projecção vídeo, e o outro uma série de folhas brancas. Na imagem projectada, uma mão escreve sobre o torso frontal (o próprio artista) as seguintes instruções: 1. Coloque a folha / 2. Una os pontos / 3. Pinte / 4. Venda. Já nesta obra o artista alude a questão da venda dos produtos descartáveis da sociedade de consumo. E arte, como um produto cultural desta sociedade, é tão inútil quanto o corpo que a fabrica. Nesta obra, João evoca tanto o desespero de Walter Benjamin quanto a ironia de Oscar Wilde.
Para Walter Benjamin a arte do século XX perdeu sua aura – tendo se tornado algo apenas utilizável, um produto de consumo. “Foi cedo – meados do século XIX – que a cultura começou a opor-se a esse racionalismo dos objectivos. Durante o período do Simbolismo e da Arte Nova, a consciência do facto aflorou em artistas como Oscar Wilde que, num gesto provocatório, apodaram a Arte de desnecessária. Mas, na sociedade burguesa – e, para falar verdade, não é só um fenómeno recente – as relações entre o últil e o inútil ocupa o lugar daquilo que o lucro já não conseguiria desvirtuar. Muito do que é classificado como bem utilitário ultrapassa a imediata reprodução biológica da vida,” queixou-se Benjamin. Mas duvido que Oscar Wilde tenha pensado desta forma, acho mesmo que o irlandês advogou sobre a inutilidade da arte porque esta era o grande trunfo dos aristocratas, que o desprezava por não o ser. Assim como a arte, o artista era inútil, mas nem a aristocracia pode passar sem.
Rir ainda é a melhor panacéia diante do inevitável, do irrevessível. Para João Pedro Vale a ironia é o melhor dos remédios. Can I wash you? é um exercício formal de como se pode torcer o caráter sério do Minimalismo. Nesta obra, o artista desenha a frase que lhe dá título sobre noventa barras de sabão azul e branco, recortadas de forma a criar um relevo publicitário. A relação com Washing hands de Bruce Nauman torna-se menos evidente para quem não a conhece. João Pedro Vale sobrepõe o gozo pop sob o apolíneo minimalista. Também em Please, Don´t Go!, o artista escreve a frase sobre um tapete feito com 3500 pastilhas elásticas aroma de morango. A canção que dá título a obra é uma pérola do cancioneiro pop, e como tal gruda nos ouvidos, tal qual uma pastilha elástica mascada. Don’t leave me this way, utilizada pelo artista na obra Blanket (don’t leave me this way), é uma frase retirada da canção homônima do ícone gay Jimmy Sommerville. Ela alude ao desejo latente nas relações amorosas, quer sejam homo ou heterossexuais. A obra é feita com cobertor de algodão, vaselina e silicone, materiais usados nos aparatos sexuais, pois a vaselina compõe a maioria dos lubrificantes e o silicone usa-se para próteses e gadgets sexuais. Contra a monotonia da arte conceptual, a ironia exibicionista e o fetish pop.
O artista utiliza-se de títulos de canções para dar corpo a suas criações, pois as canções são hoje o veículo ideal para a comunicação de massa. Where the streets have no name é uma intervenção na Blarney Street, em Cork, durante uma estada do artista na Irlanda. Ao longo desta rua, João instalou placas, iguais às que usualmente indicam o nome das casas, contendo parte da letra da música homônima dos U2. Nesta rua é que tem um pub chamado The Joshuas Tree, titulo ao álbum da banda que os fez uma mega banda e ganhar o público nos Estados Unidos. Too much love will kill you é uma pérola de ironia quando o artista cria uma obra feita com pensos rápidos s/ papel, tendo a frase de uma canção dos Queen. O amor pode ser a salvação, mas também a danação. Can you hear me?, brinca com a imagens de bastões de cotonetes tendo a frase “can you hear me?” escrita em relevo. Can you hear me é a frase mais usada pelos pop singers, nos concertos de arena, pode-se ouvir em discos dos Pink Floyds até as boys band atuais.
O jogo amoroso comparece em várias trabalhos do artista. Seja em objetos, esculturas e nos vídeos, como Help, uma vídeo-projecção contendo uma animação sobre uma cama da casal. Ao aproximar-se da cama, o observador começa a aperceber-se de que existe um movimento sobre ela. A imagem branca projectada se funde com os lençóis, a dada altura dá-se inicio a uma animação, revelando uma espécie de caligrafia desenhada num padrão sobre os lençóis, como se fosse um bordado. Contudo, um olhar mais atento revela que se trata efectivamente de uma escrita obsessiva da palavra “Help”, que é repetida até cobrir a totalidade da zona de projecção. Nesse momento a textura começa a desaparecer até que a imagem fique totalmente branca dando de novo lugar ao início da mesma escrita. Mas uma vez o artista trabalha com a memória como maneira de enfrentar o desaparecimento amoroso. João Pedro Vale junta Robert Rauschenberg e John Lennon num mesmo espaço de citação.
É deste mesmo período Are You Safe When You Are Dreaming?, outra obra repleta de cáustica ironia. A pela é composta de três elementos, uma boia feita em sabão azul e branco, borracha e corda de barco, tendo a frase que intitula a obra escrita em relevo; 15 bandeiras nas cores vermelho, azul e amarelo, que são as cores do alfabeto náutico; e um um texto em vinil autocolante. Nas bandeiras, o artista bordou, em cores ligeiramente acima da cor do fundo, desenhos de diferentes técnicas de reanimação de náufragos, utilizadas pelos nadadores salvadores. As ilustrações, retiradas do contexto que inicialmente a ilustravam, são encaradas como situações de contacto físico, um jogo amoroso. Ainda que não exista uma relação directa entre as ilustrações e o texto, ambos foram retirados do mesmo manual, uma publicação do Instituto de Socorros a Náufragos. Ou seja, aquilo que se vê, nem sempre é aquilo que se lê, é nesta contradição é que a obra mergulha para apontar o erro das interpretações.
Tal qual Jeff Koons e Matthew Barney, o espetacular dos esportes e dos ginásios aparecem de modo sistemático na obra de João Pedro Vale. Em 2000, o artista realizou uma exposição que reunia um conjunto de peças que aludiam ao esporte. Touch and go! é uma bandeira feita de toalha em turco, com a frase aplicada em flanela; We all feel better in the dark é uma cama elástica feita com tecidos de vestido de noite, tendo a inscrição We all feel better in the dark, bordada em lantejoulas, retirada de uma canção dos Pet Shop Boys; Beefcake é um conjunto de halteres feitos em esferovite e parafina, revestidos a batôn vermelho, com a inscrição em relevo. A expressão Beefcake faz referência à polémica revista de halterofilistas, editada nos anos 50. Beefcake serviu de bíblia educativa para a sexualidade gay nos repressores anos de guerra nos EUA e é bastante citada por Robert Mapplethorpe, Tom of Finland e quase todos os artistas que usam o imaginário gay; Lick My Balls é uma estrutura metálica com cesto de basket, tendo a base em gesso onde lê-se “lick my balls”, sendo que as bolas são feita em parafina, adornadas com corante e aromatizan com sabor tangerina; As balls de João Pedro Vale, ao contrário das de Jeff Koons, são mais que objectos desportivos, são atributos sexuais. Body Sculpture é uma máquina de musculação, coberta com pastilha elástica, aroma de menta, contendo o título da peça em relevo; E Don’t Ask, Don’t Tell, Don’t Pursue é um conjunto de halteres, com discos forrados a camuflado, contendo em cada um deles essa inscrição, completa a instalação; Too much love will kill you (Flag), uma bandeira feita em toalha em turco, tendo a frase dos Queen aplicada em cetim e malha brilhantes, realizada para uma exposição intitulada Try To Be More Accomodating (We Love Our Audience), apresentada no WC Container project. Nestas obras, o universo homoerótico das revistas de halterofilismo, das academias militares e dos grêmios desportivos, é evocado pelo artista em peças que exortam a exibição do orgulho viril masculino, mas denotam também que são uma construção ambígua em sua gênese.
Neste mesmo ano, o artista realiza outra instalação tendo o esporte como tema, Goalball é uma grande provocação à espetacularização dos esportes e seu grau de inacessibilidade para pessoas com deficiência. A instalação consiste numa baliza de goalball, equipamento desportivo utilizado na prática deste esporte. Um suporte de parede com um televisor exibe um registo vídeo de uma visita guiada a um grupo de invisuais; Complementa a instalação um texto descritivo, realizado em vinil autocolante preto, com uma caixa da letra superior a 30, para que possa ser lido por ambliopes, e tabelas para marcação de resultados e tempos, utilizadas em jogos oficiais e tradução do texto em vinil em braille, numa sala previamente pintada de amarelo. O Goalball é uma modalidade competitiva praticada por atletas portadores de deficiência visual, separados nas categorias masculina e feminina. Nesta peça, o artista evoca toda a gama de sinais existentes no esporte como paradigma de participação. Uma ironia amarga.
Ironia também em outros esportes (!) como a Pega, uma tourada portuguesa onde o animal não é morto, mas é mesmo assim é utilizado como adorno da ostentação masculina. Em Festa Brava (Monsanto), Joao Pedro Vale realiza um vídeo, e um conjunto de fotografias, sobre o tema. O vídeo consiste num registo de uma performance, realizada em Monsanto, Lisboa, onde um grupo de oito homens estão vestidos com o que aparentam ser trajes típicos de forcado. Um olhar mais atento, no entanto, revela que a verosimilhança se resume à parte superior do traje, já que as típicas calças e meias dos forcados foram aqui substituidos por collants e sapatos de saltos altos. O grupo, mimetiza assim, não uma tradicional pega, mas as movimentações normalmente associadas à prostituição habitual nesta zona da cidade. Ironiza-se, assim, sobre as diferentes conotações da palavra “Pega”, nome usado para definir a acção desempenhada pelo grupo de forcados na tourada à portuguesa e simultaneamente palavra usada na gíria para designar prostituta. Em Toro, uma bela cortina feita em veludo fucsia, recortado com a palavra “toro/roto” sobre tecido amarelo, João alude ao apelo que a tourada tem sobre a moda, o design, as revistas de comportamento. A tourada, seja espanhola ou portuguesa, é um símbolo da virilidade e, como tal, atrai o olhar fetische sexual.
Tal qual o esporte e a canção pop, o imaginário do cinema é outro elemento de insumo nas criações de João Pedro Vale. Como as canções, elas tornam-se títulos de muitas de suas obras, tomadas dos filmes, ou de frases ditas por personagens, as obras são desde já peças incontestes na memorábilia do artista, derivados da sua imaginação sobre a cultura de massa. When you wish upon a star é a re-criação da criação do boneco Pinóquio. Aqui, Gepetto está sob forma de um conjunto de tábuas de madeira forradas em cetim azul, cor que lembra o manto da fada que dá vida ao boneco Pinóquio. Estas transformam-se num enorme tubo de tecido onde é possível ler a frase bordada. Este tubo que ora parece um cordão umbilical, conduz o espectador até Pinóquio, e acaba por revelar-se ser o enorme nariz do boneco. A famíla disfuncional do boneco é aqui evocada, tal outro carpinteiro, José, símbolo de renúncia cristã.
Dorothy é uma peça mecânica que apela para o poder do vestido usado por Judy Garland no filme O Feiticeiro de Oz. A peça é uma boneca sem cabeça, onde pode-se ver apenas as pernas vestidas de collants, meias e calçando um par de sapatos masculinos. Na sola dos calçados está inscrito “There’s no place like home”. Uma cesta de costuras acompanha a solitária figura feminina. A frase é usada ainda na obra There’s no place like home, um par de sapatos feitos em papel de jornal e linha de coser; Mas o supra-sumo das evocações cinematográficas de João Pedro Vale é a obra Scarlett, uma outra escultura que recria o vestido de cortinados feito por Vivien Leigh / Scarlett O’Hara, no Filme E Tudo o Vento Levou. As pernas do manequim estão vestidas de collants, calções/cuecas, com texto impresso retirado de mónologo da heroína 2. Sob o vestido existe uma ventoinha o faz mover-se em diferentes direções, como se realmente uma pessoa o vestisse. O artisa junta sua galeria de mitos as bonecas raivosas de Tony Ousler, aos bonecos eróticos e glutões de Paul McCarthy, as Cicciolinas de Jeff Koons e as Coelhinhas e ex-top models de Mattew Barney, afinal todas são construções do imaginário.
O universo infantil aparece ainda nas instalações I Have a Dream e O Feijoeiro e no vídeo Do you want to be part of a world of sleeping people?. Na primeira obra, o artista recria o sonho falhado de Martin Luther King, num balão que não consegue alçar vôo, feito em tecido cor-de-rosa, construído a partir da forma do palácio da Bela Adormecida. A forma do balão-castelo é tirada dos filmes de Walt Disney, que tirou do palácio de Neuschwanstein, do rei Ludwig II da Baviera. Na obra de João Pedro Vale, o balão-castelo está murcho, sem ar, sem vida e a frase de Luther King parece ser o leitmotiv de todos os sonhos falados. Do you want to be part of a world of sleeping people? é uma vídeo-performance que à primeira vista parece tratar-se da repetição do mesmo movimento, mas acaba por nos revelar, dada a mudança de luz, que se trata de uma repetição de movimentos até ao anoitecer. Nesta acção João Pedro Vale nos faz contar carneirinhos, tal qual nos diziam, em criança, para contá-los e enfim podermos dormir.
Assim como as divas, os monstros fazem parte do imaginário cinematográfico. Em A Culpa Não é Minha, o artista elaborou uma árvore feita em ferro e cordas. Na placa de ferro contem a inscrição “mea culpa non est”. O modelo da árvore de João Pedro Vale é feita a partir de uma árvore existente, conhecida como figueira estranguladora, cujo nome científico é Moraceae Ficus Aurea, pois cresce como um parasita em torno de uma árvore anfitriã. A inocente árvore acaba não só por matar a árvore onde está alojada como as árvores em seu redor, estrangulando-as com as suas raízes. Tal os monstros carnívoros, inocentes árvores aterrorizam criancinhas nos inocentes filmes das vesperais.
Os heróis e mitos são tratados de forma irônica, sem ridicularizá-los pelo artista. O terceiro ciclo de suas obras é um debrucar-se sobre ícones, histórias e mitos locais. A apropriação dos bens históricos, dos costumes e hábitos, dos ditos populares, da crendiçe religiosa e do saudosismo colonialista, são tornados obras alegóricas que despertam sorriso e faz refletir ao mesmo tempo. O Palácio da Pena, em Sintra, é um símbolo da portucalidade do passado, tal qual o maço de tabaco português suave é uma imagem corriqueira nos dias de hoje, que invade nossas retinas dispostos nos displays dos cafes. João Pedro Vale une os dois elementos em obras como Português Suave, uma recriação do grandioso monumento arquitectónico de Sintra feito em maço de tabaco, nos moldes de Portugal dos Pequeninos. Made in China contextualiza Portugal inserindo-o no presente globalizado (ou “chinaziado”) onde não estaria incólume, aliás blindado para usar a expressão mais midiática por estas plagas.
Neste contexto, lembremos ainda do ciclo de obras sobre o mar, derivadas das odes marítimas que tanto fizeram a glória poética e histórica portuguesas. Bonfim é um barco de madeira coberto e reconstruído por fitas de tafetá branco, com o texto “não há fim para o caminho”; Barco Negro é construído por pães, peixes de plástico, flores de plástico, velas, santas em cera, fitas de cetim, cordas, tubos de borracha, cobras de borracha, galinhas falsas, moedas, rede, bóias, bolas, pneus, camisas, calças, meias, sapatos, xailes, chapéus e lenços, uma espécie de necessidades de viagem que dão corpo ao veículo.
Foi bonita a festa, pá!, é uma jangada – barco feito de troncos de árvores utilizados pelos pescadores do Nordeste brasileiro – que nas festas populares dos santos, adorna-se de flores e portam bebidas. As notícias de jornais do dia seguinte indicam que sempre alguém morre nestas festas. A causa? bebedeira. Nessa peça, João Pedro Vale evoca as festas dos santos levadas pelos portugueses para o Brasil, a relação com o mar, as tragédias do dia-a-dia. Sua jangada é coberta com cravos de plástico, caricas de cerveja Sagres e garrafas de cerveja. O título é tirado da primeira estrofe da composição política Tanto Mar (1975/1978), de Chico Buarque e Ruy Guerra, o cineasta e escritor moçambicano que participou da invenção do cinema moderno no Brasil, o Cinema Novo. Na época, a música serviu para sintetizar o sentimento gerado pela Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, data que marcou a transição do regime ditatorial português para a democracia, enquanto o Brasil ainda vivia a sua ditadura. A marca de cerveja portuguesa Sagres, homónima do navio escola Português e de parte da região sul deste país, área mais associada às descobertas, é o elo com o passado. O artista também evoca a sua memória natal nos pratos que apresenta, feitos a partir de maços do cigarro Português Suave, nome dado a arquitetura ornamental portuguesa construída na época da ditadura militar. A padronagem dos pratos tem como referência os icônicos azulejos do século XVIII, trazendo consigo palavras de poemas populares da literatura brasileira, e um do Fernando Pessoa, retirado de um livro intitulado Quadras ao gosto popular.
O mote “navegar é preciso”, alimento do sonho colonial português, fecha o ciclo do mar, com mais algumas peças. A primeira, Heróis do Mar é um farol de areia, ferro e letras de ferro; A segunda, Medusa, é uma alegoria do monstro mitológico que toma forma de uma anêmona marinha feita em tecidos nobres como seda e cetim; Cruz é uma âncora feita com caricas de água do Luso; E Mar Salgado é uma âncora feita em esferovite coberta com sal, para lembrar quanto Oh!, mar, salgado mar, quanto de suas águas são lágrimas de Portugal. Como o mar e o esporte, a religião é outro tesouro nacional, formando a trindade da tradição portuguesa. Deus e Pátria, o sonho da portucalidade desde D. Afonso Henrique, é motivo para que João Pedro Vale elabore uma série de trabalhos tendo a religião como mote. Miracle é um par de asas feito em ferro, velas e fitas de cetim, contendo a inscrição All I need is a miracle.
A Pátria e a Religião conjugaram-se, no presente na obra Fortuna, uma escultura feita em moedas de ouro, jóias, pedras preciosas, provenientes das viagens marítimas, já que a oração que embalou as descobertas foi a “glória a Deus nas alturas e ouro aos homens de boa vontade para cruzar os mares em busca do metal precioso”. A instalação Misericórdia consiste num conjunto de esculturas feitas a partir de peças do tesouro nacional português, a Custódia de Belém, Placa e Insígnia das Três Ordens, Cruz de Sancho, Relicário de D. Leonor, Custódia da Bemposta, Laça de Esmeraldas, Coroa Real, Castão, Brincos em Forma de Trevo, Prato dos Albuquerques e Gomil. As peças originais são gloriosas jóias feitas com o ouro d´além mar, fundidos com o sangue dos negros. As reluzentes e esfuziantes peças de João Pedro Vale são jóias fakes produzidas com pratas de chocolates e papel de rebuçado, como uma alegórica coquete, essas jóias barrocas e rococós são o mais puro simulacro.
Esse universo monumentalista do ciclo colonial é para João Pedro Vale uma mais valia, pois pode retirar dele material para muitas obras. Em Quanta Rariora Tanta Meliora, o exótico, o estranho, o maravilhoso, o transgressivo é recriado num conjunto de treze esculturas, inspiradas nas peças trazidas das expedições científicas patrocinadas pelas cortes européias. Em busca do exótico, sobretudo os austríacos, os franceses, os ingleses, holandeses e os alemães, patrocinaram grandes expedições científicas, tendo o intuito de trazer objectos curiosos. Os frutos destas expedições foram mostrados como invulgares, desde aparatos religiosos até índios, objetos que passaram a integrar as colecções reais. João Pedro Vale recria este universo artístico-cietífico não mais com com materiais locais, e como tal exóticos, mas por materiais do nosso quotidiano. Resinas, caricas, cabeleiras, collants, pastilhas elásticas, punaises, maços de tabaco, moedas ou penas, estão carregadas de significados e referências usadas pelo autor que exalta o carácter extravagante e fantasioso que escondemos no nosso imaginário.
Evitando a citação óbvia e a simples deslocalização contextual, João Pedro Vale recupera a magia das obras originais, perseguindo sempre uma prática transgressiva de experimentação através de uma estratégia em que testa e trabalha as formas, referências e características de identidade, utilizando operações de adição, subtracção, ou conversão de um significado em outro. Essa luxuriante recriação atende pelos nomes exóticos ao nossos ouvidos, Bezoar, Origo, Nautilus, Lotus, Salvatorium, Primus Inter Pares, Quo Vadis Domini? , Ecce Homo, Cobras e Lagartos, Unhas e Dentes, Narval, Equus Lusitanus, Ostrich, tornam-se tão estranho quanto suas formas. Também na série de trabalho Barometz, o passado, o exótico são mostrados como sinal de conquista da civilização sobre a babárie. Com suas peças fakes e alegóricas, João Pedro Vale apresenta-se como um hábil prestidigitador que desconstrói em cada obra o nosso olhar tranquilo sobre o mundo.
O ciclo dos amores históricos ganha uma interpretação hilariante na obra Amores Perfeitos. A história do amor impossível de Inês de Castro e Pedro, tal qual o de D. Sebastião, alimenta os ditos populares, cria uma mitologia incontornável no imaginário português. A peça recria os dois personagens sob a forma de um par bovino, feitos em ferro, rede de arame e flores de papel, onde o artista alude à procissão feita por D. Pedro para apresentar a noiva morta à corte. Os amores impossíveis é colocado em outras obras como Não é amor, são só manchas nas minhas calças, uma espécie de bandeira feita em tecido jeans manchado, que alude ao gozo espermático. Ou I want your love, um boquet de flores feito com notas de dólar e plástico. E ainda Fado, uma tatuagem-fotografia que nos dá a dimensão temática trágica e sofredora do estilo musical. A obra de João Pedro Vale conjuga história, arte, cultura, sexualidade, mitos e ritos locais para alçar a imortalidade que somente a obra de arte é capaz de oferecer. Com suas obras irônicas e bem humoradas, faz-nos rir das nossas pequenezas, salientando que tudo é ilusório neste mundo de aparências, de simulacros. Se, como afirma o filósofo da pós-modernidade, é a verdade que a oculta que não há verdade, nada melhor que viver apenas o brilho fugaz da estrela que já se apagou.
Paulo Reis Lisboa, março de 2007.
1 Dedicado à memória de Jean Baudrillard que ascendeu ao imaterial, tendo deixado uma das mais belas e necessárias obras sobre nosso tempo. 2 “As God is my witness, as God is my witness, they're not going to lick me! I'm going to live through this, and when it's all over, I'll never be hungry again - no, nor any of my folks! If I have to lie, steal, cheat, or kill! As God is my witness, I'll never be hungry again.”
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