João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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Exótico?
Não!
Transgressivo.


O que é que distingue um objecto de outro e o torna singular? O que é que o torna tão invulgar que possa detonar uma intenção de posse tão forte que alguém pode querer possuí-lo de facto? Talvez a mão do artífice experiente esteja ligada por um elo muito fino à mente imaginativa do artista, que conhece e maneja a “forja”, que transforma os objectos provenientes da natureza em singulares constructos de um universo distendido pelos eixos do maravilhoso, do inesperado, do desconhecido e do exótico. E quem o escolhe?

Encontramos aqui um leito espesso, moldado por significações colhidas no imaginário popular, pagão, rico em atribuições qualitativas características dos efeitos de determinadas substâncias, e uma dimensão estética na significação metafórica ou alegórica em cada peça acabada. Esta tipologia de objectos, com uma diversidade bastante complexa, é mostrativa da diversidade do mundo que se nos apresenta sobre formas e efeitos estranhos abrindo as portas da curiosidade, da metafísica e do conhecimento. Este mundo diverso foi compreendido na consagração de uma criação Divina absoluta em que a Natureza é, não só o palco central dos actos humanamente praticados mas, principalmente o lugar e a tábua da ordem cosmológica e terrena. Como seria maravilhoso possuir algo que integrasse as qualidades mágicas do corno de rinoceronte (desconhecido na Europa até ao final da Idade Média), qualidades curativas para o corpo e para a alma reunidas com a mais virtuosa técnica do ourives mais sábio e do hábil cravador de pedras.

Às portas do Renascimento humanista, a Idade Média iluminava o horizonte à metafísica e às crenças pagãs vigiando uma o passo da outra por caminhos distintos, e esgrimindo entre si duas visões do mundo. Uma, subjugada pela criação da natureza como prodígio maior de uma Divindade que tudo dispunha encoberto por uma promessa de um futuro celeste; a outra apresentava um mundo transbordante de riquezas onde brilhavam crenças fantásticas, decerto menos atinentes à condição subserviente da criação humana, mas prometedoras de uma potencialidade mágica e terrena. É nesses caminhos infinitamente paralelos, da ciência e da crença que as primeiras viagens, principalmente por via marítima, vão colher alguns espécimes que após observação atenta são considerados estranhos. Talvez mesmo exóticos. São objectos cuja proveniência era até aí ignorada. O novo mundo, abre-se também a África, de onde provinham a novidade e o exotismo entregues às mãos de artistas e artífices virtuosos, que por mediação do interesse e do gosto mais esclarecido constituíram as câmaras de curiosidades raras, onde se misturavam obras de arte até então impensáveis na criação humana, mas também objectos de função meramente decorativa e por vezes pitoresca. Nestas câmaras (de curiosidades) toda a excepção ao conhecimento constituía uma parte do mundo a conhecer. Como se fossem linhas ligadas ao universo imenso, que era necessário (e não é ainda nas fronteiras mais longínquas da ciência?) colher e guardar como se se tratasse de um novelo feito dos fios do mundo. Crenças e princípios científicos de interesse humanista percorrem as veredas mais recônditas do espírito humano e persistem no seu imaginário e ideário como mistérios e maravilhas prometidas. O Padre Manuel Palacios1 exilado na Patagónia e ciente da existência do Unicórnio é seguramente um exemplo da perseguição desta teoria, suficiente para lhe alimentar a vontade de viver e pesquisar, mas escassa no respeitante à prova científica e demonstrativa. Mas o corno do Unicórnio (presente no imaginário do João Pedro Vale como raridade evocativa e expositiva) não chegou às mãos dos connoisseurs e dos artistas como troféu a exibir, mas como figuração de uma lenda que transmitiu simbolicamente as suas qualidades ao corno de rinoceronte, ao bezoar, à pata de elefante, e a outras amostras da natureza cuja simbologia e acção mágica (magnética?) rapidamente se constituíram como material suficientemente interessante para os primeiros coleccionadores. Neste sentido as primeiras formas de catalogar o universo desconhecido e de estabelecer uma hierarquia entre as amostras recolhidas começava a construir-se como uma lógica racional de organização do mundo. Como se fosse um mapeamento do universo imenso e distante através das amostras recolhidas. Mas não bastava apenas a raridade e a sua proveniência. Quanto mais raro fosse o objecto natural melhor, porque quanto mais rara a coisa é, menor é a probabilidade da semelhança e mais fortes serão os seus sinais no que respeita às suas qualidades físicas. Mas também às suas qualidades reconhecidas numa esfera de entendimento empírico, mágico, muitas vezes associadas a formas e actos de purificação do corpo e da alma que implicavam a sua projecção nas entranhas de oficinas plenas de mestria criando assim condições ideais para a sua apresentação nos cabinets dos coleccionadores. A raridade transforma-se num valor incalculável de poder para o seu administrador. quanta rariora tanta meliora2. Um exemplo maior é sem dúvida D. Catarina de Áustria, Rainha de Portugal pelo casamento real com D. João III, e que é evocada como a mais apaixonada (compulsiva?) detentora de uma das mais importantes colecções de objectos exóticos. O seu interesse por objectos raros, luxuosos e de apreciável valor contribuiu para disseminar e divulgar o gosto por esta actividade insólita até então, trazendo para a Europa desenvolvida objectos naturais e artísticos de diversos quadrantes da Terra, sendo muitos destes provenientes do denominado oriente português. Dá-se uma fusão entre a curiosidade, a ciência, o conhecimento, o gosto pelo belo e pelo exótico pertencentes ao universo extenso que era a naturalia proveniente das investidas por terras desconhecidas, e a artificialia praticada com mestria e arrojo pelos artistas europeus. Rudolf Distelberger, diz a este respeito o seguinte:

Uma coisa ficaria clara: as curiosidades constituíam uma grande proporção da Kunstkammer. Os materiais específicos não eram simplesmente usados como matéria prima, do modo como o marfim, que também é exótico, tinha sempre sido. A curiosidade, por si, tornara-se uma peça de exposição, também no seu estado manipulado. Nas palavras de Vincenzo Borghini o objecto pertencia, então, "nem completamente à natureza, nem completamente à arte, mas em partes iguais a ambas".
Magia e mito do desconhecido, em conjunto com o elevado valor de materiais exóticos e naturais específicos, motivaram particularmente os ourives e os seus conselheiros humanistas para criarem uma nova categoria de artefactos que pressupunham a ars mechanica do seu ofício mas que simultaneamente a deixavam para trás. A ponte para a artificialia tinha sido há muito atravessada.3

Ultrapassada esta ponte pode compreender-se porque abundaram jardins com espécies provenientes das novas terras descobertas, diversos tipos de colecções de objectos raros e sistemas de classificação. A pintura, a gravura e o desenho foram também afectados por esta transição na representação e no entendimento do Universo, de certa forma profanado pelas riquezas aparecidas dos confins do mundo adequadas à exibição da prosperidade que a Europa começava a viver.

João Pedro Vale opta por recuperar uma outra categoria para esta exposição usando métodos similares (com proveniências distintas) para realizar objectos artísticos invulgares. A citação na aparência de cada peça parece óbvia no imediato, mas sucumbe no mesmo instante a uma prática seguramente articulada ao longo do seu trabalho. Os diversos materiais conjugados, reunidos para dar corpo físico e, desta forma, existência a obras novas acompanham os mesmos passos que os artistas do séc. XVII. O corno de Rinoceronte, ou o Nautilus, cuja proveniência e qualidades estéticas ou mágicas integram uma galeria onde encontramos o ouro, a prata ou o bronze, mas também as caricas, ou as pérolas, os ossos e dentes de animais, a cola, o bezoar, o cristal de rocha, o âmbar ou a madrepérola, diversas formas moldadas em poliéster ou resina, papel colado, meias de lycra, ovos de avestruz, safiras, marfim, madeiras exóticas, cristal de vidro ou cabeleiras falsas, tudo isto conflui nestas obras. Em presença ou em alegoria simbólica. A questão principal é que João Pedro Vale trabalha num hemiciclo onde concorrem memórias de identidade, por vezes longínquas e referências colectivas do nosso quotidiano. Mas há uma segura diferença no acto do fazer, os materiais envolvidos nas obras apresentadas nestas exposição requerem um imaginário historicamente reconhecível e referenciável, mas ocorrem numa transmutação de usos técnicos e simbólicos que ultrapassa e transgride uma provável localização. O bezoar4 será representado por uma peruca, e é neste aspecto que o trabalho se torna particular porque a representação formal é aproximada e a utilização do material também. No entanto a peruca que descobrimos na aproximação e observação da peça contém a referência dessa acumulação calcária num jogo exigente com a memória, e simultaneamente a peruca ocupa um lugar equívoco e projecta-nos para uma gradação de referências, ligadas ao corpo como adereço e desta forma com propensão performativa da personalidade. Este é apenas um detalhe da obra que nos aproxima de um entusiasmo extravagante, mas principalmente do controlo sobre a função que um determinado material pode ter e da possibilidade de converter essa função na criação da obra.

No percurso de João Pedro Vale, algumas obras são exemplares da sua capacidade de articular e conjugar referências a práticas humanas e iconográficas, dispondo com inventiva de materiais e problemáticas de aparência diversa. I Have a Dream é uma obra composta, numa das apresentações, em duas partes5. O balão (com o cesto, as cordas, os apetrechos) e um mapa. Esta obra com uma proposta política determinada e objectiva, apresenta simultaneamente algumas questões relacionadas com a escultura. A escala da obra é aparentemente monumental, o volume é imenso mas a aproximação é reveladora de uma proporção à escala humana. De certa forma o balão imenso (ideal, real ou sonhado) que agregámos à nossa memória histórica e livresca transportava-nos para um sonho, imediatamente decapitado ante a visão tridimensional deste artefacto aeronáutico mutilado, caído pelo chão. Caído do céu? Caído à nossa frente no espaço em que nos encontramos. Como se fosse possível demonstrar que os sonhos perdidos (ou traídos) podem ter uma forma terrena e que inesperadamente não é apenas um sonho perdido que lamentamos mas que essa possibilidade se encontra frustrada perante nós. Na metáfora desta obra o desencanto não se restringe somente à falácia do sonho e da liberdade, existe uma outra alteração visível na forma como a obra é construída e fabricada pelo artista. É um teste à capacidade de entendimento do espectador. É um pouco mais do que um jogo. É uma proposta dissimulada que só a aproximação à obra pode desvelar a diferença entre as proporções da escala monumental e da escala quase doméstica e dominável. A forma está lá, mas a proximidade que permite descobrir o detalhe revela opções que enunciam a diferença na sua manufactura. Parece apenas uma brincadeira. Mas muito séria. Por outro lado a obra está ancorada pelo mapa que nos dirige para um percurso, em que somos expostos a um confronto com a nossa posição ética frente a uma declaração de violência contra a homossexualidade, colorido na mesma cor do balão. Cor de rosa. O balão embora aparentemente inerte e quase vazio, repousa como um ser enorme passível de desejo em estertor de morte, e traz consigo toda a inércia ficcional que o precipita no nosso lago íntimo da fantasia e do mistério. Detêm-nos referências ao mundo mágico e fantasioso de Walt Disney e do castelo da bela adormecida mas em morte latente. Ou a tentativa de ser puxado pelos ares por um balão de ar quente que Reinaldo Arenas perseguiu na sua rota imaginária que o levaria de Cuba para a liberdade.

Em diversas situações João Pedro Vale tem vindo a construir obras que nos permitem colher, como folhas de um feijoeiro, diversas chaves de um universo fantástico e profundamente humano. Tal como o balão, na obra Bonfim, a nave (não me atrevo a chamar-lhe barco ou navio) flutua na suspensão da esperança dual de um caminho de infinita liberdade que não traz consigo o porto de chegada, o fim que é atirado para o infinito quando se lê nas fitas Não há fim para o caminho6. Há uma oposição aparente e por vezes equívoca no tratamento e apropriação dos materiais, mas consciente e manipuladora das suas significações que se abre como o delta de um rio onde não se vislumbra a saída, mas onde dificilmente reconhecemos margens seguras.

Na obra Nautilus João Pedro Vale constrói um exemplo forte da manipulação das referências. O Nautilus7 com a superfície gravada em baixo relevo na obra original aparece-nos sob a mesma forma, mas a superfície é sarja colada em escadeado, e é decorado por uma armação constituída por moedas (cêntimos de Euro) com a face voltada para nós identificando o país de origem da moeda e não o seu valor fiduciário. Estes cêntimos são cunhados em Portugal. Da mesma forma que na obra Bezoar o pedestal não é em ouro mas em caricas da cerveja Sagres8, uma das mais tradicionais cervejas portuguesas. As obras apresentadas nesta exposição são originais e raras como eram as obras exóticas e invulgares do séc. XVII. As matérias primas não são provenientes do fundo do mar, ou de um outro lugar menos vulgar, mas do nosso quotidiano.

De certa forma o seu trabalho escultórico nunca pretendeu recuperar as formas e a invulgaridade das obras originais, antes pelo contrário perseguiu sempre uma tentativa experimentadora e cumulativamente obsessiva de transgredir o nosso olhar sobre elas. A estratégia pode parecer no início apenas irónica, mas João Pedro Vale testa e trabalha formas, significados e características de identidade utilizando operações de adição, subtracção, ou conversão de um significado em outro. A linguagem é uma matéria dúctil e, é uma matéria prima estrutural do seu trabalho. O que é que distingue estes objectos dos outros e os torna singulares? A manipulação que o artista faz com o nosso frágil e instável conhecimento das coisas do mundo.

João Silvério


1 Cfr. Bruce Chatwin, Na Patagónia, Lisboa, Quetzal Editores, 2002, p.107-119.
2 "Quanta rariora tanta meliora" (Quanto mais raro melhor), é uma citação do Imperador Maximiliano II, que dá o título a esta exposição de João Pedro Vale. Cfr. Rudolf Distelberger, "Quanta rariora tanta meliora" The Fascination on the Foreing in Nature and Art, p.21-25, in AAVV, Exotica: the portuguese discoveries and the Renaissance kunstkammer, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
3 Ob. cit (trad. do autor).
4 O bezoar é uma forma de cálculo ou concreção encontrada principalmente nos intestinos de animais ruminantes. Antigamente os bezoares eram tidos como um poderoso antídoto universal contra qualquer veneno. Pensa-se que a palavra deriva etimologicamente do termo Persa pâdzahr que significa “protecção contra o veneno”.
Ver imagem 49, p. 154, in AAVV, Exotica: the portuguese discoveries and the Renaissance kunstkammer, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
5 Apresentado no âmbito do projecto In Transit, Edifício Artes em Partes, Porto, Portugal, 2002.
6 Nesta obra João Pedro Vale cruza crenças que aparentemente estão em posições opostas, as fitas do Senhor do Bonfim como amuleto da salvação e a frase do romance de Neville Jackson No End to the Way, (cfr. Nuno Alexandre Ferreira, Não há caminho para o fim, in Luzboa- A Arte da Luz em Lisboa, Lisboa, Extramuros, 2004).
7 Ver imagem 110, p. 235, in AAVV, Exotica: the portuguese discoveries and the Renaissance kunstkammer, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
8 Sagres é, também, o nome de uma vila costeira situada no extremo sudoeste de Portugal, na qual o Infante D. Henrique, patrono dos descobrimentos Portugueses, no séc. XV, instalou um pólo de estudo para a navegação e cartografia, o qual incluía um arsenal naval, um observatório e uma escola para o estudo da geografia e navegação.