João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
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Entre a instalação e as palavras
A relação entre objecto e texto é muitas vezes explorada nas obras de João Pedro Vale através da referência a temas como o corpo, a natureza e a cultura (pop). Integrando frases curtas, as suas instalações não só tratam da presença no compartimento como abordam o espectador de uma forma muito directa. Nas obras de João Pedro Vale decorre um jogo espacial, no âmbito do qual as peças ocupam literalmente o compartimento usando as palavras como elementos móveis entre a obra, o espectador e o espaço.
Em A culpa não é minha (2003) todo o tronco imenso de uma velha árvore é amarrado com cordas brancas cuidadosamente atadas e colocado numa galeria. As cordas envolvem o corpo da árvore como um estrangulador a matar a sua vítima ou uma planta trepadeira a crescer como um parasita até causar a morte da sua hospedeira. A emergência de nova vegetação enquanto a antiga se decompõe é um processo natural mas neste caso insinua-se um sentimento inquietante, talvez porque o artista combina beleza e crueldade neste acto, executado com extrema elegância, ordem e precisão. Subjazem a A culpa não é minha temas como o controlo e a influência sobre outrem, tópico que Vale explora de forma mais explícita em I Want to be Your Dog (2001), retratando as relações entre senhor e servo através de jogos sexuais.
Na maior parte das obras de João Pedro Vale é visível o processo de execução da obra, como na bandeira bordada à mão Too Much Love will Kill You (2000) ou na ordem engenhosa das cordas em A culpa não é minha. Tornando patente o processo de trabalho, Vale chama a atenção para a instalação enquanto objecto e o artista enquanto criador. No entanto, na última peça referida, o artista colocou, afastada do tronco, uma placa com a inscrição "mea culpa non est", indicando um comportamento passivo, uma submissão sem resistência. Esta atitude reflecte não só uma resignação à lei da natureza mas também a negação do complementar papel criador do artista. Geralmente, estas placas de ferro negro são usadas para classificar árvores nos jardins botânicos, sendo colocadas na própria árvore, ao passo que aqui ela se encontra desligada da fonte, apontada como um monólito no meio do compartimento branco ou uma lápide em memória de uma árvore tombada.
Analisando A culpa não é minha somos dominados por um sentimento gótico caracterizado pelo desânimo, a escuridão e poderes sobrenaturais. A correspondência entre a sólida caixa negra de pequenas dimensões e as amarras lassas do tronco - que se desatam e sulcam o solo como a cera de uma vela - criam uma sensação sublime, dividida entre estruturas minimais e complexas. Qual requiem em que elevação e dor se associam, A culpa não é minha combina elementos diversos fundindo-os num só, sob a égide de uma expressão gravada em ferro frio e pesado. Assim poderia ser um memento mori dos nossos dias.
A caveira pintada que outrora simbolizava o facto de os homens morrerem desapareceu. Contudo, é como se a inscrição "mea culpa non est" no metal negro nos advertisse antes de entrarmos no compartimento onde se encontra o poderoso e pálido tronco. Gera-se aí um universo de encantamento através de ramos poeticamente entrelaçados numa teia esporádica e sistemática de pontas soltas. Este poderia ser o cenário de contos de fadas ou sonhos aventureiros, um universo encantado à parte assente na teia branca dos laços. Mas nada é eterno e o encantamento quebra-se assim que nos lembramos de que todos temos de morrer. Considerada retrospectivamente, a inscrição na parede já nos avisava antes mesmo de entrarmos no local. Porventura.
Frases claras volvem-se em indicações complexas quando associadas a instalações na obra de João Pedro Vale. Os textos funcionam como palavras-chave que alteram a percepção e assinalam a própria existência da instalação. Ao princípio, as letras articulam uma linguagem que descodifica a aparência inicial do objecto, acrescentando-lhe um significado adicional. Revelado o conteúdo das frases, o contexto da instalação atinge uma outra dimensão insinuando-nos palavras no espírito.
É o que acontece em We all Feel Better in the Dark (2000). Um mini-trampolim com todas as peças revestidas a preto ostenta a frase "We All Feel Better in the Dark" bordada a itálico exactamente no ponto do salto. As letras acetinadas brilham ligeiramente contra a borracha mate do tapete de salto como se estivessem prontas para uma descolagem extemporânea. Assim, deixando a obra exceder a sua própria forma de um modo bem sucedido e intelectual, João Pedro Vale estende o espaço que envolve a instalação. A frase "We All Feel Better in the Dark" é simplesmente atirada para o ar pelo poder do tapete de salto do trampolim. Claro que se trata de uma simples experiência mental, imaginária, não forçosamente de algo visível, mas se decidirmos enveredar por aí, a pergunta 'sentir-nos-emos todos melhor às escuras?' desvanece-se no ar e paira à nossa volta.
A ligação estreita entre a instalação e as palavras conduz a uma investigação sobre a realidade e a linguagem num estilo quase wittgensteiniano. Todavia, ela não se torna nunca uma reflexão unívoca porquanto as frases formam um significado isolado que facilmente se furta à física da peça, instaurando uma nova ordem da obra.
As instalações de João Pedro Vale distinguem-se pela sua beleza e pela sua presença poderosa, dissolvendo-se desta forma em actos imaginários não obstante as conotações literárias. Tentarão as suas obras escapar à sua existência física no momento em que sobre elas recai a nossa atenção? Nesse caso, as citações associadas às peças funcionam como confirmações da forma material e sugerem uma descolagem fortuita. Criando um paradigma complexo entre a instalação e as palavras, as obras de João Pedro Vale magistralmente exploram e estendem o espaço, num duplo sentido: literal e metafísico.
Helene Nyborg Andrersen
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