João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
 
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Amalia

Em 2002, a escultura intitulada Português Suave abriu um novo trajecto na obra de João Pedro Vale o qual viria a definir-se pelo uso de signos, objectos e narrativas comummente perspectivados pela história enquanto instâncias fundadoras da identidade portuguesa. Capítulos do passado político nacional, como os descobrimentos e o Estado Novo, ou práticas de ordem cultural e vivencial como o carpir nazareno, a tourada ou o folclore têm por isso sido retomados pelo artista com recorrência, nos últimos anos. A recuperação de tais referências, por vezes já quase esquecidas pelo tempo, sabemos que actua nos seus trabalhos não sob a forma de um revivalismo acrítico, mas como agente subversivo de certas convenções que vêm preenchendo a construção de uma pretensão identitária nacional.

A este propósito, o fado, na sua acepção de expoente máximo da música popular portuguesa, tem motivado particularmente o artista na realização de alguns dos seus projectos mais recentes, entre eles, Fado, 2005, na sequência de Barco Negro, 2004 e agora Amalia, 2009.

Amalia consiste então numa fotografia destinada à capa do disco Paixão – uma compilação de temas de Amália Rodrigues –, onde João Pedro Vale indexa o nome de Amália sob o seu próprio peito até este sangrar, numa acção que parece evocar um dos versos dos Lusíadas: "O nome que no peito escrito tinhas" (Canto III, Episódio de D. Inês de Castro fundador do amor trágico na literatura portuguesa). Sob este corte é entretanto operado um outro corte que decompõe o nome da fadista e nos leva a lê-lo de forma alternada, ora Amália ora Ama lia. A partir desta suspensão estabelecida entre a sonoridade e a semântica da palavra, Vale cria diferentes sentidos que se engendram e parecem concorrer, juntamente com aquela acção sacrificial, para a ideia de amor trágico, tão promovida pela cultura do fado e que remonta ao referido episódio camoniano. De resto, a fadista cantou recorrentemente e incentivada por alguns poetas (David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Alexandre O’Neil, entre outros) muitos poemas de Luís Vaz de Camões, gerando uma continuidade e um diálogo entre uma escrita erudita e a expressão popular que o fado significa. Em certa medida, esta aproximação foi produzida intencionalmente, num contexto diverso do da circulação popular do fado e o facto de poetas tão diferentes, em termos estéticos e ideológicos, se terem empenhado em fazer confluir a sua poesia e a de Camões para o fado, para além da mera tentativa de construir uma raiz comum para o lirismo nacional, revelaram quanto uma identidade se constrói e produz com intencionalidade, senão mesmo voluntarismo. De onde, aquela acaba sempre por ser uma ficção construída por uma identificação, reclamada por diferentes perspectivas.

Ora, se o fado como ficção lírica e trágica do amor, a partir de Amália Rodrigues, se torna culturalmente híbrido e recorre à memória camoniana para a sua expressão plena, não custa perceber como uma tatuagem pode partilhar semelhante ambição. Ao tatuar o nome da fadista no seu peito, João Pedro Vale vem assim actualizar essa transferência entre práticas eruditas e urbanas. No acto de escrever no peito um nome e quebrá-lo de forma a produzir polissemia, como se de uma palavra poética se tratasse, não só se processa um jogo poético, que é também recorrente nas práticas do grafitti, como sobretudo o acto retoma o próprio verso de Camões. Mas se neste o acto é uma imagem metafórica, em Vale existe um processo de literalização associado à tatuagem popular, que no entanto nos fará certamente lembrar algumas performances mais extremas de Chris Burden ou Marina Abramovic, onde ambos repensavam a relação entre arte e corpo, colocando-o em risco. Se as noções de presença e de verdade eram fundamentais para a realização destas acções, será que o são também para este trabalho de João Pedro Vale? Estará o artista interessado, em reforçar a ideia de paixão como uma fatalidade, através de um acto que evidencia dor?

Um olhar atento aperceber-se-á que a luz do flash projectada sobre o nome de Amália denuncia a artificialidade do sangue, pondo afinal em causa toda a veracidade que a acção parecia supor. Não se tratando de um acto sacrificial, como poderia levar a pensar quer a apropriação e literalização do verso de Camões, quer a sugestão performativa evocada no quadro da história da arte, João Pedro Vale vem dar continuidade ao jogo de apropriação e deslocação e expandir a sua ficcionalidade para fora da dicotomia gesto erudito/ gesto popular, por demais inoperante e que em Amália Rodrigues era já superada – e essa é a sua homenagem –, para introduzir o puro gozo dessa deriva de que são feitas as próprias palavras dolorosas ou de amor que Amália cantou.


Sofia Nunes