João Pedro Vale +
Nuno Alexandre Ferreira
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A preto e branco
A exposição que João Pedro Vale apresenta coloca diversas questões que, não sendo novas no seu trabalho, nos podem surpreender. Este projecto – e é de facto de um projecto único que se trata – é construído por intervenções aparentemente independentes, uma característica vincadamente autoral, em que a identidade constitui a linha central de reflexão e de questionamento.
ENGLISH AS SHE IS SPOKE tem como ponto de partida um guia de conversação editado na década de cinquenta do século XIX1. A obra original intitula-se "ENGLISH AS SHE IS SPOKE – O Novo Guia de Conversação em Portuguez e Inglez, em Duas Partes" e foi publicada pela primeira vez em 1855 por Pedro Carolino e José da Fonseca. O livro é referenciado como um clássico humorístico pelo facto de conter uma infinidade de erros fonéticos e gramaticais que se devem ao facto de nenhum dos seus autores saber falar inglês. Acresce ainda a dúvida sobre a autenticidade da co-autoria da obra. Este livro, como qualquer outro manual, teve como função auxiliar a comunicação, ou seja, concorrer para a integração daqueles que, desconhecendo a língua de um país de acolhimento, para onde emigraram, ultrapassam dessa forma as limitações que a adaptação impunha ao seu quotidiano.
É neste âmbito que o projecto de João Pedro Vale ganha espessura e se desdobra em diferentes áreas da produção artística, através da realização de um vídeo em co-autoria com Nuno Alexandre Ferreira, de uma exposição de desenhos e da concepção e design gráfico de um cartaz para promoção das sessões, a realizar no auditório da Biblioteca Pública e Arquivo Regional e no Cine Clube de Ponta Delgada.
O que atravessa a diversidade de meios utilizados neste projecto é a identidade e a sua evocação frente ao desenraizamento cultural, à diferença social e à incomunicabilidade. Ou seja, o que interessa ao artista é reflectir sobre o universo em que detém o seu olhar, independentemente da técnica e dos meios escolhidos para representar o seu processo de questionamento.
Os desenhos, sobre fundo negro, remetem-nos para um imaginário escolar, a ardósia da sala de aula (que podemos associar ao início do vídeo), em que se escrevem as primeiras frases de aprendiz, mas simultaneamente para a maravilha da imagem (nocturna?) dos edifícios iluminados do Convento da Esperança, no Campo de S. Francisco, ou ainda para o dente de baleia que inscreve na memória colectiva a arte baleeira, internacionalmente conhecida pelo palavra de origem inglesa scrimshaw, e que representa uma das mais expressivas manifestações culturais dos Açores. Tal como o fado, expressão sentida da "saudade" nas palavras de John, uma das duas personagens da história narrada no vídeo, que se contrapõe a uma outra frase que é obrigado a repetir numa das cenas de interrogatório: "I love this country". Esse país que John é compelido a amar é um território que se esconde na ambiguidade da experiência e do desejo. Entre o sonho de uma carreira musical e a experiência do desenraizamento e da privação.
Tal como nos desenhos, em que a cultura popular e erudita se cruzam, o vídeo recupera e integra referências do cinema, do teatro e da televisão. A acção decorre dentro de um espaço que se reorganiza continuamente e se transforma, como um palco de teatro, num campo de basquetebol, numa cela de interrogatório, ou no quintal de uma casa pobre de subúrbio. A iluminação dramática e nocturna tem uma nota de film noir, quase a preto e branco. Os diálogos, reescritos a partir do livro aqui referido, têm como referência principal a série inglesa "Follow Me", criada pela BBC Learning Television, mas, tal como acontece no livro, esses diálogos parecem quase perder o sentido. As palavras são frequentemente repetidas como se fosse necessário forçar a comunicação, o que demonstra que a adaptação e a pertença a um lugar e à sua comunidade tropeçam na incomunicabilidade, na intolerância e no desfasamento temporal.
Voltemos à ardósia negra para ver a mão escrever as palavras correctas no quadro, ou aos desenhos da galeria, que recuperam na nossa memória a identidade colectiva.
1 Conforme a referência a esta obra em: www.exclassics.com/espoke/espkcont.html
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